segunda-feira, 29 de junho de 2009

Colóquio Internacional no MAM


Em 30 de junho e nos dias 01 e 02 de julho, será realizado o “Colóquio Internacional Novos Diálogos: Cinema / Tecnologia / Percepção” no Museu de Arte Moderna – MAM do Rio de Janeiro.
.
Organizado pela Université de Paris 8 e pela UFF, será apresentada uma série de conferências sobre o pensamento e a imagem cinematográfica; o lugar do cinema na reestruturação contemporânea das técnicas, representações e narratividade da imagem. O evento também contará com uma mostra de filmes entre os dias 03 e 05 de julho.
.
Com tradução simultânea, o Colóquio é gratuito e as vagas são limitas.
O MAM localiza-se na Avenida infante Dom Henrique, 85 - Parque do flamengo - Rio De Janeiro. Telefone: (21) 2240 4944.

domingo, 28 de junho de 2009

Conto

Caros alunos de Prática II

Ao invés de 2 seminários nesta segunda-feira, 29/06, teremos apenas o seminário sobre Conto.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Aos alunos de Prática de Ensino II, quinta à tarde

Caros alunos e alunas

Os seminários desta quinta - O Conto maravilhoso e a Fábula - acontecerão no horário normal da nossa aula, e não com a redução do tempo que havíamos proposto.


Boa sorte!

p.s. Árita, estou contando com o conto do Cortázar, ok?

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Lévi-Strauss lê Montaigne

Trecho da entrevista de Lévi-Strauss – o fundador da antropologia moderna, autor de Tristes Trópicos, para o Jornal Folha de São Paulo, em 1993.

FOLHA - O SENHOR SEMPRE TOMOU O PARTIDO DA CIÊNCIA, MAS, NA RELEITURA DE MONTAIGNE QUE FAZ EM A HISTÓRIA DO LINCE MOSTRA TAMBÉM SUAS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO A UMA FÉ NO CONHECIMENTO. O SENHOR SE TORNOU MAIS CÉTICO EM RELAÇÃO À CIÊNCIA?

LÉVI-STRAUSS - A lição que tirei de Montaigne é que estamos condenados a viver e pensar simultaneamente em vários níveis e que esses níveis são incomensuráveis. Há saltos existenciais para passar de um a outro. O último nível é um ceticismo integral. Mas não se pode viver com ceticismo integral. Seria preciso se suicidar ou se refugiar nas montanhas. Somos obrigados a viver ao mesmo tempo em outros níveis em que esse ceticismo está moderado ou totalmente esquecido. Para fazer ciência, é preciso fazer como se o mundo exterior tivesse uma realidade e como se a razão humana fosse capaz de compreendê-lo. Mas é "como se".

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Cordel: artesanato de linguagem


Maria Isaura Pereira Rodrigues
(Centro Universitário Plínio Leite - RJ)


Estórias impressas em livrinhos para serem vendidas em feiras, comumente expostas em barbante (o que justifica a denominação), o cordel é um tipo de literatura que reelabora, em versos, formas tradicionais de contar, aproximando-se do mito, da lenda, do conto popular, do “causo”.

De origem rural e basicamente centrada na oralidade, as estórias apresentam uma linguagem que, adequada ao espaço reduzido da página em que os textos são publicados (de formato 12 x 16 cm), prima pela síntese e condensação. À vista disso, nela se adotam, de forma peculiar, princípios de economia e contenção. Um breve exemplo pode ser observado no seguinte trecho, extraído do folheto Emigração e as conseqüências, de Patativa de Assaré, em que, na construção compacta da estrofe, justapõem-se orações e economizam-se palavras e elementos de ligação. Aqui, como já o fora nos primórdios do gênero narrativo, a sintaxe das estórias é mais expressiva do que discursiva, caracterizando-se pelo traço de poeticidade:

Nesse estilo popular
Nos meus singelos versinhos
O leitor vai encontrar
Em vez de rosas espinhos
Na minha penosa lida
Conheço do mar da vida
As temerosas tormentas
Eu sou o poeta da roça
Tenho mão calosa e grossa
Do cabo das ferramentas.

Por serem narradas em versos, as estórias de cordel são, ao mesmo tempo, poemas e narrativas. A fusão entre prosa e poesia dá origem a uma escritura híbrida, em que o processo poético-narrativo, atento à exploração de recursos fônicos, promove o reencontro com a musicalidade da linguagem popular e das fontes orais da literatura. A rima e a métrica, dando cadência ao enunciado, são, portanto, os principais elementos que favorecem a avizinhação da linguagem do cordel com a linguagem dos contadores de estórias. No fragmento transcrito, adotam-se as décimas com o esquema de rima ABABCCDEED. Gonçalo Ferreira da Silva, ensaísta, cordelista e presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, ao referir-se a procedimentos de metrificação utilizados na literatura de cordel, esclarece:

As décimas, dez versos de sete sílabas, são, desde sua criação no limiar do século, as mais usadas pelos poetas de bancada e pelos repentistas. Excelentes para glosar motes, esta modalidade só perde para as sextilhas, especialmente escolhidas para narrativas de longo fôlego (SILVA, 1999, p.25).

Já Candace Slater, em A vida no barbante, afirma que A sextilha é o padrão predominante na métrica do cordel brasileiro (SLATER,1984, p.12).
Por outro lado, ligado à manipulação de material folclórico, o cordel recupera, de uma distância de séculos, o narrador comunitário. Nos textos, ocorre o reaproveitamento de uma voz primitiva, que à maneira dos contadores, repassa um discurso comum à coletividade. O narrador, que aí se apresenta, contando estórias, atualiza de forma engenhosa a figura do narrador arcaico. Ele exerce, nesse caso, a função do falante (a estória produz o artifício da oralidade), que desloca o leitor para a função de ouvinte. Imprimir oralidade à escrita é um dos procedimentos que marca, sobremaneira, a produção de cordel. Visto nesta perspectiva, o cordel pode ser considerado uma escritura com qualidades que autorizam aproximá-lo da narrativa artesanal, de que trata Walter Benjamin, no célebre estudo intitulado “O narrador”.

Na antiga sociedade artesanal, não industrializada, que antecede o projeto da modernidade, destaca-se, como coloca Benjamin, o narrador da tradição oral. Este atua como preservador e repassador de conhecimento utilitário, promovendo o intercâmbio de experiências coletivas, assimiladas vagarosamente do vivido, depois de registradas pela memória da comunidade. As antigas estórias — ouvidas e contadas por mulheres e homens, enquanto se dedicavam ao trabalho artesanal — desenvolvem-se num tempo vasto e em ritmo lento. Sem fornecer explicações, apresentam uma estrutura inacabada que possibilita sempre novos acréscimos. Através dessa forma artesanal de comunicação, os valores comunitários, resultantes da articulação da memória coletiva e individual eram transmitidos de pai para filho durante várias gerações. Já na modernidade, o narrador do romance (também este, alvo de análise de Benjamin), inserido na sociedade industrial estratificada, marca a sua presença com o registro de uma vida individual. O texto, nesse caso, propicia ao leitor (solitário e recolhido no processo de recepção) um confronto com uma vida com sentido, embora desprovida de utilidade prática. O narrador, neste estágio, já não fala de maneira exemplar, já não passa sabedoria.
No contexto atual, o sentido da vida parece perdido, pois o sujeito já não inclui em si o conjunto da experiência. Nos termos de Christopher Lasch:

Cada vez mais nossas impressões sobre o mundo derivam não de observações que fazemos, tanto como indivíduos quanto como membros de uma comunidade mais ampla, mas de sistemas de comunicação, que vomitam informação a maior parte dela inacreditável, sobre acontecimentos dos quais raramente temos algum conhecimento direto (LASCH, 1990, p.119).

O narrador pós-moderno, marcado pelos efeitos da velocidade e vazio de experiências vivenciadas, narra informações. Ao lado do leitor, como diz Silviano Santiago no estudo intitulado “O narrador pós-moderno”, ele é o observador de fragmentos de vidas que são apresentadas como espetáculo. Ele transmite:

(...) uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva de sua existência (...) Nesse sentido, ele é o puro ficcionista (SANTIAGO,1989, p.39-40).

Segundo Benjamin, a modernização crescente das sociedades torna cada vez mais difícil e escassa a figura do narrador oral, cuja voz, na troca de experiências vividas com seus ouvintes, se reveste de dimensão utilitária e exemplar. Benjamin aponta a informação como causa para a decadência por que hoje passa essa antiga forma de comunicação comunitária. Diz ele: Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio (BENJAMIN, 1985, p.203).

Visto sob esse ângulo, o cordel, com suas narrativas curtas com raízes no folclore e características similares à tradição oral do patrimônio épico, é prova de resistência do artesanato narrativo num contexto tomado pela reprodutividade técnica, em que, cada vez mais, o excesso de informação esgarça as relações de troca recíproca de experiências e entorpece a consciência histórica, desestabilizando a memória individual e coletiva.

Partindo-se desses pressupostos, busca-se, doravante, situar o presente estudo no âmbito da análise de textos, com o propósito de rastrear, em folhetos variados, princípios análogos aos das narrativas artesanais. Visa-se, portanto, determinar alguns procedimentos narrativos assumidos pelo texto de cordel, em seu permanente movimento de apropriação de matrizes da cultura tradicional.

A leitura geral de folhetos de diferentes épocas permite observar que os textos ganham uma dicção oral, próxima dos contos populares, independente dos temas que abordam: sejam eles tradicionais (conservados inicialmente na memória e hoje transmitidos pelos próprios folhetos) ou circunstanciais (os acontecimentos contemporâneos ocorridos em dado instante e que tiveram repercussão na população respectiva) , segundo classificação de Sebastião Nunes Batista, em Antologia da literatura de cordel (BATISTA, 1977, p.VII). Veja-se, a propósito, como, nos trechos abaixo, o narrador, de maneira direta ou indireta, adota a postura do “contador de estórias”, que se dirige aos seus “ouvintes”:

Meu leitor, meu amiguinho
permita a imaginação
desse encontro imaginário
de Kung Fu com Lampião
na cidade de Juazeiro
de Padre Cícero Romão...

Pois bem, eu vou dizer
como foi que aconteceu
dizendo quem se feriu
quem matou e quem morreu
depois diga por aí
quem contou isso foi eu.

(Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte, de Abraão Batista)


Por estas pequenas trovas
faço ciente o leitor
uma cena comovente
por motivo de amor
a qual fez uma donzela
sofrer penetrante dor.
....................................

Leitor agora deixemos
Lindalva por um instante
e falemos de um rapaz
um personagem importante
que Lindalva consagrou-lhe
um amor puro e constante.

(O ladrão que não roubou, de Sebastião José do Nascimento)

Quando escutamos falar
de fatos acontecidos
dos tempos de reis perversos
e de príncipes destimidos
por estranha sensação
nos sentimos envolvidos.

E são estas as histórias
que o povo mais admira
como sonhos envolventes
ou como doce mentira
iguais estas que contamos
de Adriana Lenira.
(Adriano e Lenira, de Gonçalo Ferreira da Silva)


Os fragmentos citados mostram bem como a linguagem do narrador simples e próxima do leitor/ouvinte, tecendo-se dentro de uma ética afetiva, torna a narração, que articula cotidiano e ficcionalidade, algo íntimo. O narrador estabelece, por meio dos mais variados mecanismos, (dentre os quais se têm as apóstrofes, as perguntas e, às vezes, a antecipação do assunto) um elo direto com o leitor, de modo a que pense nas estórias como se estivessem sendo contadas naquele momento.

Em vários folhetos (como, por exemplo, Adriano e Lenira), ocorrem referências a temas distantes e tempos longínguos, procedimento que expressa a idéia de continuidade e a característica do fingimento que reveste esse tipo de narrativa. Há que se observar também que em certos folhetos, o narrador se refere ao assunto que vai enfocar como “estória recontada”. A técnica utilizada é a de narrativa sobre narrativa. Neste caso, explicita-se o movimento de retomada, de volta ao passado, para percorrer um caminho já trilhado. O cordel surge dessa sucessão de múltiplas “renarrações”. O texto provocado é o resultado de um reagenciamento de material discursivo preexistente, o qual é reelaborado artificiosamente, numa atitude que baralha as categorias de autor e propriedade. Esse mecanismo escritural pode ser verificado no trecho a seguir:

Por isso conto uma história
que ouvi contá-la em troncoso
de um homem pobre demais
além disso preguiçoso
casado com uma mulher
do coração generoso.

(O homem da vaca e o poder da fortuna, de Francisco Sales Areda)


Tendo como principais operadores formais os expedientes da reutilização e reciclagem, num movimento que envolve memória e esquecimento, o sujeito que narra faz, em muitos casos, uso de um recurso essencial à forma de composição dos antigos poemas épicos da Grécia: a invocação, pedido de inspiração a seres sobrenaturais. Na Ilíada e na Odisséia, de Homero, são inúmeras as invocações feitas às Musas, divindades inspiradoras. O secular gesto de invocação às Musas, tão caro à tradição épica , ressurge transmutado nos folhetos. A invocação, herança do espírito clássico, às vezes é feita à Musa, às vezes a um Santo ou a Deus. Em Milagres e romarias em Aparecida do Norte, de Azulão, por exemplo, a invocação é feita à Virgem Maria:

Ó Virgem Mãe, inspirai-me
Com um pensamento forte,
Com vossa divina graça
Vos pesso que me conforte
Que eu conte em versos rimados
Vossos milagres obrados
Em Aparecida do Norte.

No fragmento citado, a narrativa-poema põe em evidência conteúdos ligados à dimensão do divino, em que se mostram aspectos expressivos relacionados à esfera psicológica do sujeito “criador” e à intuição poética, que remonta a uma tradição mítica.
Embora estejam ligadas a manifestações culturais seculares, essas estórias não são um mero refazer de material arcaico, guardado na memória; na verdade, a fala poética do narrador revitaliza o cristalizado e, despertando-lhe a antiga magia, faz com que, de alguma forma, o conteúdo dessas estórias se relacione com o dia-a-dia do leitor/ouvinte e adquira utilidade, um sentido prático no presente. Como diz Benjamin, no texto citado: Esta (utilidade) pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos (BENJAMIN, 1985, p.200).

Como o discurso do narrador se entretece na matéria da “vida vivida” com vistas a alcançar uma verdade mais profunda, a transmitir sabedoria, é comum nessas narrativas, que ilustram aspectos da vida humana, a presença de provérbios e ditos relacionados ao enredo, de frases sentenciosas, avaliando o narrado, e de reflexões filosóficas. Nesse caso, além de contador de estórias, o narrador, deslocando o leitor para o nível da enunciação, estaria exercendo as funções de analista e crítico. Nos fragmentos a seguir, esses expedientes, que ampliam a atuação do narrador, podem ser facilmente localizados:

Aquele que hoje ri
Amanhã pode chorar
Já que a sorte é volúvel
Não se deve confiar
O tempo que traz a sorte
O mesmo pode levar.

(História do debate do Papa de Roma com Roberto Carlos, de Joaquim Batista de Sena)

O gado fugiu pras matas
Lá foi comido por feras
O dinheiro derreteu-se
A casa virou tapéra
E o fazendeiro ficou
Pobre do jeito que era

Assim findou-se porque
Zombou do poder divino
Ultrapassando o limite
Levou tudo ao desatino
Acabou ouro e fazenda
O seu orgulho ferino.
(O homem do arroz e o poder de Jesus, de José João dos Santos, Azulão)


E até quando Deus quiser
aqui, vivendo, lutamos
sem jamais perder a fé
pois também acreditamos
depende muito de nós
o Rio que nós amamos.
(Rio que nós amamos, de Sepalo Campelo)


Às vezes, permeando estórias onde a crítica ou o elemento dramático se faz evidente, a dicção cômica do narrador se realiza como nota de afrouxamento. É o que ocorre no folheto O trem da madrugada, de Azulão, do qual se extraiu o fragmento que se segue:

Leitores trago mais uma
Criação muito engraçada
Da minha lira poética
Que sempre vive afinada
Desta vez descrevo bem
O movimento do trem
Que desce de madrugada.

Em outros momentos, a situação (quase) cômica se faz acompanhar de frases reflexivas:
Contei que o belo Oscar
Apanhou das moças audaz
Enquanto ele aprendeu
Todas ficaram incapaz
Algumas foram viver
No cabaré a fazer
Os gostos de Satanás.

(O rapaz que apanhou das moças por não saber namorar, de Caetano Cosme)

A contínua revisitação às dobras da memória, às fontes da tradição oral, não visa instaurar rupturas no código poético da literatura de cordel. O jogo eficaz que o narrador realiza com a linguagem não constitui um gesto inaugural. A estética aqui não está buscando condições e efeitos experimentais, mas sim formas de expressão que melhor traduzam a visão de mundo do narrador e da comunidade que ele representa. A função poética não deixa de estar presente, regendo fundamentalmente a escritura, mas sem destaque especial no todo.

Um outro aspecto que merece atenção é fato de o relato, em geral, se realizar também como cena e imagem. Um exemplo é o folheto O trem da madrugada, de Azulão, em que a voz narrativa, desnudando o processo compositivo, chama a atenção do leitor/ouvinte para o aspecto visual do texto:

Quem duvidar o que eu digo
No meu livro de poema
Venha conhecer o subúrbio
Com seu povo e seu sistema
Depois que fizer morada
Pegue o trem da madrugada
Que vê todo esse cinema.


A técnica de “mostrar” o que está sendo narrado imprime ao processo narrativo do folheto aludido um alto grau de descritividade, transformando o texto numa espécie de enunciado-espetáculo:

Seja de Paracambi,
São Mateus ou Santa Cruz
A turma da fuleragem
Que só bagunça produz
De madrugada só quer
Carro que tem mais mulher
Porta enguiçada e sem luz.

Mulher de anca bem gorda
Diz o cabra, esta é legal
Se acoa por trás dela
Que a coitada passa mal
Dá bronca, dá coice e upa,
O cabra tá na garupa
Só desmonta na Central.

Não adianta dar bronca
Nem reclamação, nem choro,
A turma rodeia ela
Fazendo força igual touro,
Por trás, de frente, de lado,
Só urubu esganado
Por tripas no matadouro.

A mulher fica no meio
É homem por todo lado,
Cada um tira uma linha
De maldade e fraseado
Quando ela banca a lôba
Outro grita olha a mão bôba
Que aí só tem tarado.

No folheto aludido, a escritura, empenhada em extrair um substrato imagético do signo verbal, percorre um caminho próximo ao das narrativas épicas, um tipo de composição que tem a visualidade como dado inerente. Observe-se no trecho transcrito, como o narrador “descreve” o episódio da viagem de trem para o leitor. Aqui não é possível dissociar narração e descrição.

Normalmente nos folhetos, a narração se faz acompanhar de ritmo descritivo. Isso possibilita explorar o cruzamento entre o código verbal e a ocorrência da imagem. A partir de solicitações que o enunciado de formação nitidamente visual faz ao imaginário, um campo de analogias, de associações se estabelece, impulsionando a fantasia visual do leitor.
O apelo visual também integra de modo exemplar o enunciado do folheto já citado Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte, onde, mais uma vez, narração e descrição formam um todo coeso e inseparável. Nessa arte compósita, as estrofes tornam-se campo visual em que recursos sonoros se fazem notar:

Kung Fu roçava a espada
Lampião se defendia
com uma faca lombada
cortando de travessia
e os golpes daquelas armas
de longe a gente ouvia...

Se Lampião saltava alto
Kung Fu também saltava
naquela briga feroz
o fogo azul que faiscava
tinha um brilho tão grande
que o dia ofuscava.

Kung Fu deu um pulo
para confundir Lampião
mas ele fez um rodízio
rodando que nem pião
que Kung Fu quando baixou
quase que perdia a mão.

´ Pode-se, pois, constatar, à vista do exposto, que a literatura de cordel, incorporando expedientes da narrativa oral, encena em seus versos a presença do narrador arcaico, capaz de recontar, na contemporaneidade, estórias de um passado ainda próximo ou distante e de recuperar seculares aspectos da civilização tradicional.

A reutilização de valores da sociedade arcaica devolve ao sujeito, pela via da ficção, recortes de experiências e do passado longínguo, reconstitui referências dispersas de práticas comunitárias, recupera a proximidade que caracteriza a primitiva forma do relato.

Face à multiplicidade, instantaneidade e fugacidade que cada vez mais caracterizam a vida moderna, onde a industrialização da cultura se amplia, diluindo identidades, a literatura de cordel, na contra mão desse processo, constitui uma das mais ricas e fortes manifestações do saber popular regional. Voltado para o passado, mas aberto às solicitações do presente, o cordel, preservando o significado originário de sua escritura, mantém seu código poético tradicionalmente vinculado à narrativa artesanal, expressão do tempo de duração, de permanência.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Sebastião Nunes. Antologia da literatura de cordel. Natal, Fundação José Augusto, 1977.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo,
Brasiliense, 1985.
LASCH, Christopher. O mínimo eu. São Paulo, Brasiliense, 1990.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: ------- Na malhas das letras. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
SLATER, Candace. A vida no barbante. Rio de Janeiro, 1984.
SILVA, Gonçalo Ferreira da. Vertentes e evolução da literatura de cordel. Rio de Janeiro,1999.

FOLHETOS E ROMANCES CITADOS ( dispostos na ordem em que aparecem no texto):
Emigração e as conseqüências, de Patativa de Assaré.
Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro, de Abrãao Batista.
O ladrão que não roubou, de Sebastião do Nascimento.
Adriano e Lenira, de Gonçalo Ferreira da Silva.
O homem da vaca e a perda da fortuna, de Francisco Sales Areda.
Milagres e romarias em Aparecida do Norte, Azulão
História do debate do Papa de Roma com Roberto Carlos, de Joaquim Batista de Sena.
O homem do arroz e o poder de Jesus, de Azulão.
Rio que nós amamos, de Sepalo Campelo.
O trem da madrugada, de Azulão.
O rapaz que apanhou das moças por não saber namorar, de Caetano Cosme.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Estudos Culturais na UFRJ



George Yúdice é professor da University of Miami. Foi professor do Programa de estudos americanos e de literaturas e línguas espanhola e portuguesa na Universidade de Nova Iorque, e atuou como diretor do Centro de Estudos Latino-americanos e do Caribe. Autor de, dentre outros títulos, A conveniência da cultura: usos da cultura na era global - livro lançado pela UFMG em 2005 e que já vendeu 5 mil exemplares -, ele acha que "o intelectual hoje é uma pessoa que intervém".
.
Acerca da vendagem deste livro, ele diz em entrevista para a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda: "Acho que esse sucesso é porque ele extrapola o universo acadêmico. Pessoas que estão mexendo em gestão cultural, multicultural estão comprando. Pessoas de estudos culturais compram, mas outras pessoas de arte, também".
.
Na semana passada, Yudice participou - no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ - de uma mesa-redonda da qual fizeram parte o prof. uruguaio Abril Trigo e a Profa. carioca Beatriz Resende (UNIRIO/UFRJ). A mesa discutiu sobre os desdobramentos do Estudos Culturais Latino-Americanos. A seguir, transcrevo algumas das idéias do professor acerca da arte e da cultura contemporâneas, num tempo no qual os vínculos entre economia, sociedade e cultura parecem cada vez mais fortalecidos.


4 takes para os alunos que não assistiram ao evento:



1 - Yudice iniciou a sua comunicação ressaltando a importância dos professores e pesquisadores atentarmos para os jovens. Segundo ele, os jovens alunos devem ser inseridos "libidinosamente", já que, na sua opinião, "as mudanças culturais não estão realcionadas apenas com a cultura". Essas mudanças têm a ver com a escola e com as políticas educacionais, pois no atual contexto a cultura é lida como "prática material" (Abril Trigo).
.
2 - Segundo Yudice, a maioria dos professores não conhecem (nem se interessam) pelas práticas culturais dos jovens contemporâneos: video-games, yotube, blogs, chats, MP-3, músicas no pc... Isso dificulta a interação entre mestres e alunos. Inseridos na atual "cultura do acesso", esses jovens sentem-se desinteressados com o modelo proposto pela escola .
.
3 - Atentando para a importância dos suportes materias e dos produtos midiáticos na cultura, o ensaísta ressaltou "os lugares de socialização da internet". Falou das possibilidades de movimentos culturais e econômicos a partir dessas redes. Ressaltou pesquisas voltadas para a programação cultural na TV destacando, como exemplo, as relações inusitadas entre os desafios propostos pelos reality shows e a tragédia grega. O prof. citou Antígona, de Sófocles, como exemplo de um dos textos clássicos a partir dos quais é possível traçar relações entre a "experiência pessoal como encenação" e como produto comercial e o roteiro experimental dos personagens trágicos.
.
4 - Yudice resgatou a leitura que Walter Benjamin faz do flaneur e do seu trânsito no espaço urbano no século XX para tecer relações com o atual contexto digital e midiático, onde novas tecnologias proporcionam o surgimento de outras sensibilidades. Segundo ele, a expressão dessas sensibilidades exigem outros modos de percepção, outros meios de interação, assim como as formas perceptivas que o pensador alemão conseguiu captar nas primerias décadas do século XX, através do cinema e da arquitetura.


quinta-feira, 11 de junho de 2009

Festival Artimanhas Poéticas 2009


Real Gabinete Português de Leitura será palco de palestras, debates e lançamentos

O festival literário Artimanhas Poéticas será realizado nos dias 12 e 13 de junho, no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro (RJ), com curadoria do poeta Claudio Daniel.
O evento contará com a participação de críticos literários, como Luiz Costa Lima, poetas jovens e consagrados, como Paulo Henriques Britto, Virna Teixeira, Sérgio Cohn, Richard Price e o português Luís Serguilha, entre outros, e editores de revistas. O festival incluirá palestras, debates, recitais, lançamentos, performances musicais e de poesia sonora.

sábado, 6 de junho de 2009

Aos alunos de Prática de Ensino III

Car@S Colegas,


O Fórum de Ciência e Cultura e o Programa de Pós-Graduação em Comunicação têm o prazer de convidá-l@s para a mesa-redonda que discutirá os desdobramentos do Estudos Culturais Latino-Americanos, no dia 10 de junho(quarta-feira), às 18:30, no Salão Moniz de Aragão do Fórum de Ciência e Cultura.
.
A mesa-redonda contará com a presença dos Profs. Abril Trigo e George Yúdice e tendo como mediadora e debatedora a Profa. Beatriz Resende. Para qualquer informação sobre a localização, favor consultar, http://www.forum.ufrj.br/>. Abaixo seguem informaçõessobre os participantes.
.
.
.
Atenciosamente,
João Freire,
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ
Denilson Lopes,
Superintendente de Difusão Cultural do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ
.
.
Abril Trigo é Professor de culturas latino-americanas e Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos na Ohio State University.
Publicou extensamente sobre Estudos Culturais, com particular ênfase na formação histórica dos imaginários nacionais e sua articulação com distintas manifestações do popular. Entre os seus livros, destacamos Caudillo, estado, nación. Literatura, historia e ideología en el Uruguay (1990); ¿Cultura uruguaya o culturas linyeras? (Para una cartografía de la neomodernidad posuruguaya)(1997.); Memorias migrantes. Testimonios y ensayos sobre la diáspora uruguaya (2003); e The Latin American Cultural Studies Reader, do qual éco-editor (2004), assim como numerosos ensaios sobre a problemática cultural da América Latina. No momento, está trabalhando em dois manuscritos: Crisis y transfiguración de los estudios culturales latinoamericanos e Crítica de la economía político-libidinal de la cultura.
.
.
George Yúdice é Professor da University of Miami.
Foi Professor e Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da New York University.
Seus interessesde pesquisa incluem política cultural; processos de transnacionalização e globalização; a organização da sociedade civil, entre outros. Ele é autor deVicente Huidobro y la motivación del lenguaje poético (1977); Música, tecnología y experiencia (2007); Cultura y política cultural en AméricaCentral: 1990 a 2007 (2007); The Expediency of Culture (2004),este foi traduzido para o português e para o espanhol. Ele também é co-autor deCultural Policy (2002) e co-editor de On Edge: The Crisis of Contemporary Latin American Culture (1992) e da coleção “Cultural Studies of theAmericas” da University of Minnesota Press. Ele foi consultor de diversos organismos internacionais. Também foi editor de Social Text e, no momento,pertence ao conselho consultivo de Cultural Studies, Found Object, and Topia: Canadian Journal of Cultural Studies.
.
.
Beatriz Resende é Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), pesquisadora do CNPq e Cientista do Nosso Estado da Faperj. É autora de Lima Barreto e O Rio de Janeiro Em Fragmentos (1993); Apontamentos de Crítica Cultural (2002) e Contemporâneos: Expressões da Literatura Brasileira no século XXI (2008). É editora de diversos livros, entre eles, A Literatura Latino-Americana no Século XXI ( 2005).

quinta-feira, 4 de junho de 2009

A Literatura Deslocada: o Cânone e os Estudos Culturais


IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA


DELZI ALVES LARANJEIRA


A emergência dos estudos culturais no cenário acadêmico provocou mudanças significativas nos enfoques e conceitos até então entendidos como exclusivamente literários. Na esteira do debate envolvendo os estudos literários e os culturais, o questionamento do cânone literário tem sido um dos principais indicadores dessas mudanças. Os estudos culturais têm postulado uma crítica da representatividade do cânone enquanto fator de exclusão, ou seja, de Homero a Joyce, o cânone privilegia um padrão eurocêntrico composto por uma maioria de escritores mortos, brancos e homens. Esse padrão, ao ser endossado e perpetuado, discrimina e alija a produção literária que opera fora dessas premissas.

A onda crítica em relação ao cânone desdobrou-se em uma defesa de seu status quo — como por exemplo Harold Bloom em O Cânone Ocidental — e em uma demanda por sua “abertura”, postulada por grupos considerados marginais, como mulheres, negros, homossexuais, ex-colonizados, etc. Toda essa problemática está inserida em uma questão maior, que envolve o status da literatura, ou melhor, dos estudos literários em relação aos propósitos dos estudos culturais. Esse embate tem mostrado que a existência de posições antagônicas é inevitável; em relação ao cânone, porém, elas podem ser reavaliadas à medida que o processo de valorização da obra literária é melhor apreendido.

A palavra cânone deriva do grego antigo kanon, que significava um padrão de medida, “uma norma pela qual todas as coisas são julgadas e avaliadas” (McDonald, 1996:13). O cânone religioso é formado por textos considerados sagrados, como os da Bíblia, que reivindicam inspiração divina. O processo de formação do cânone bíblico envolveu debates entre os líderes das comunidades religiosas e a definição de critérios sob os quais um determinado texto era selecionado. A uma certa altura desse processo, o cânone foi autoritariamente fechado e novos textos não puderam ser adicionados.

Embora seja derivada do cânone religioso, a idéia de uma seleção de textos considerados mais “apropriados” — o cânone literário seria secularizado —, há, obviamente, uma importante diferença qualitativa entre ambos: a flexibilidade. Ao contrario do cânone bíblico, o literário é aberto, uma vez que está sendo continuamente aumentado, bem como subtraído (Guillory, 1995: 237). Os critérios para a inclusão podem ser discutíveis, como atesta a onda crítica a que estão sendo submetidos, mas não há como negar que o cânone literário é dinâmico: um exemplo disso é a reinclusão dos poetas metafísicos ingleses ao cânone depois de terem sido, de uma certa forma, “descanonizados” no século XVIII.

Os dois cânones divergem também porque o cânone literário não é uma seleção de obras feita por uma elite que se reúne para decidir quais serão canonizadas ou não. Há todo um processo de seleção, formação e preservação de uma obra literária. Obviamente, há uma valorização da obra quando se considera que ela contém qualidades que a distinguem e a tornam melhor do que outras. De acordo com John Guillory (1995: 235), esse julgamento ocorre dentro de um contexto institucional, que é a escola. Assim, “o problema do cânone é um problema de syllabus e currículo, as formas institucionais pelas quais as obras são preservadas como grandes obras” (1995: 240).

A escola, como detentora de distribuição de conhecimento, tem a função de ensinar como ler e escrever e também o que ler e escrever. Assim, ela define certas obras literárias como conhecimento e, através de sua inclusão nos currículos, perpetua e preserva esse valor conferido a elas. A habilidade de ler e escrever é fundamental para a existência do cânone. Ela explica, por exemplo, a exclusão das mulheres do cânone literário até o século XIX. Não existiam obras literárias femininas simplesmente porque a maioria esmagadora das mulheres não tinha acesso à escola.

A partir do século XIX, nomes como Jane Austen, Emilly Dickinson, as irmãs Brontë, na literatura inglesa, começaram a aparecer e foram posteriormente incluídos no cânone. O critério de exclusão de mulheres e minorias étnicas não se encontra numa seleção preconceituosa e imutável de “grandes” obras de arte; ele pode ser explicado dentro de um contexto histórico como uma “exclusão dos meios de produção literária, da alfabetização em si” (Guillory, 1995: 238). Isso significa que ocorreram resistências e preconceitos em relação à canonização da produção literária das mulheres e outros grupos marginalizados, mas aceitar que a formação do cânone faz parte de um processo conspirativo contra esses grupos é assumir uma posição extrema e improdutiva em termos de reavaliação do cânone.

Da mesma maneira, segundo Guillory (1995: 235), transformar “a cena de conspiração em uma cena de representação” — na qual o cânone seria aberto para garantir o direito de representação dos grupos marginalizados — também não contribui para a elucidação do processo de canonização das obras literárias, uma vez que essa visão teria que chegar a um consenso quanto a um conceito de valor estético para justificar porque as obras não canonizadas são tão boas quanto as canônicas. Do contrário, a solução seria erigir diferentes cânones para os diferentes grupos, o que não garantiria que a reprodução dos critérios usados para o cânone eurocentrico não se repetiria.

A escola se configura, então, como a mediadora entre literatura e sociedade, e como a instituição que molda o cânone. Assim, os estudos literários na escola se definem pelo ensino não de qualquer tipo de escrita, mas de uma escrita valorizada (Milner, 1996: 06). A partir dessa distinção, o que hoje chamamos estudos culturais emerge, no contexto sociocultural da Inglaterra nos anos 30 e 40. A obra de F. R. Leavis é a pedra fundamental desse processo. Leavis foi o mentor de um modelo que enfatizava as virtudes da língua (inglesa) e “a significância do cânone literário nacional” para a cultura nacional como um todo (Milner, 1996: 9). Esse modelo coloca a literatura num lugar privilegiado, como mediadora entre sociedade e estado. No entanto, essa mediação se restringe a um conceito de cultura que, tanto no sentido social, quanto no estético, ou seja, cultura como modo de vida e como arte, se define como uma cultura de elite.

A literatura na visão leavisiana é a alta arte, em contraposição à cultura popular, a “baixa arte”. Segundo Milner (1996:09), o embrião dos estudos culturais formou-se quando surgiu, por parte de acadêmicos treinados na tradição de Leavis, como Raymond Williams e Richard Hoggart, a curiosidade de saber o que há além do cânone. Em contrapartida a uma literatura canonizada e ao alcance de uma minoria privilegiada, o interesse pela educação de adultos oriundos da classe trabalhadora, pela cultura de massa, a ficção popular, textos publicitários e de jornais (Williams, 1996: 153), foi determinante para o surgimento dos estudos culturais.

A mudança de foco do literário para o cultural foi ocasionada por uma “virada sociológica” (Milner, 1996: 11). Se o conceito de cultura postulado por Leavis enfatizava as categorias de (alta) arte e estética, para Raymond Williams, o conceito de cultura é mais elástico. Ao deslocar a noção de cultura das definições de artes e humanidades para as de ciências humanas e sociais, os estudos culturais “tenderiam a ver o valor cultural como socialmente construído”, enquanto “os estudos literários tradicionais definiam a literatura como uma categoria estética atemporal” (Milner, 1996:11). Nessa nova visão, o foco da análise incide nos textos culturais e indicadores sociológicos, como a classe social.

Num primeiro momento, o texto literário canonizado, inserido em uma visão leavisiana de literatura, é descartado como objeto de estudo. O contexto histórico em que os estudos culturais surgiram permite fazer uma ligação com as idéias postuladas pelo modernismo anglo-americano no que diz respeito ao estabelecimento de uma divisão entre alta e baixa arte. Essa dicotomia já havia sido criticada pelas vanguardas históricas no início do século 20, mas essa crítica, pelo menos em termos literários, não foi suficiente para evitar que a divisão se estabelecesse.

À canonização de James Joyce, Virginia Woolf, T.S. Eliot, William Faulkner e Joseph Conrad, escritores que enfatizavam o processo de escrita e produção da obra, contrapôs-se toda uma produção literária ligada ao romance policial, ao folhetim romântico, aos quadrinhos e à ficção científica, gêneros considerados de menor (ou nenhuma) importância pelos defensores do alto modernismo. Em relação ao cânone, o tipo de escrita valorizada e adicionada foi justamente a produção literária que se adequava ao paradigma do alto modernismo — a fissura entre cultura de elite e cultura de massa. Com uma clara opção por essa última, os estudos culturais preencheram o vácuo criado pelo desprezo modernista à cultura de massa, enquanto as universidades se dedicavam ao estudo (e ao ensino) dos modernistas canonizados.

No seu projeto inicial, como relata Raymond Williams (1996: 153), o que hoje denominamos estudos culturais pretendia ser uma opção aos estudos literários institucionalizados nas academias, daí a preferência por um público-alvo diferente — adultos e mulheres — com um programa diferente — discussão da literatura em relação à experiência vivida e, ao invés de textos canonizados, o estudo da ficção popular, textos publicitários e jornalísticos. Raymond Williams (1996: 154) enfatiza que a formação dos estudos culturais se deu fora da academia: sua base foi a educação de adultos e o seu desenvolvimento foi na práxis dessa educação e não a partir de textos — The Uses of Literacy (1957), de Hoggart, Culture and Society (1958), do próprio Williams, entre outros, como é comumente descrito. A existência desses textos considerados fundadores só foi possível por causa dessa práxis.

A crítica ao elitismo modernista desembocou no que hoje denominamos pósmodernismo, que constituiu, segundo Andreas Huyssen (1986: viii), “o segundo maior desafio à canonizada dicotomia alta / baixa arte” (o primeiro desafio, como dito acima, foi levado a termo pelas vanguardas históricas). Assim, um certo caráter vanguardista caracterizou a crítica ao modernismo, que foi acusado de ser hostil à cultura de massa, de enfatizar uma separação da cultura do dia-a-dia e de se distanciar de interesses políticos, econômicos e sociais. Como resultado, uma característica marcante da estética pós-moderna é o embaralhamento das fronteiras entre alta e baixa arte. O movimento Pop por exemplo, foi representativo desse momento em que um novo debate acerca do relacionamento entre arte e vida, imaginação e realidade é estimulado.

O desejo de romper com a dicotomia cultura de elite / cultura de massa também gerou críticas daqueles que defendiam os valores modernistas às expensas do pósmodernismo e do vanguardismo. Theodor Adorno foi o teórico da modernidade por excelência, e ele insistia na separação entre alta arte e cultura de massa, objetivando, segundo Huyssen (1986: ix), salvaguardar a “dignidade e autonomia da obra de arte das pressões totalitárias dos espetáculos de massa fascistas, do realismo socialista e uma cultura de massa comercial e mais degradada do que nunca no Ocidente”. Huyssen (1986: x) argumenta que esse projeto foi substituído por um novo paradigma, o pósmoderno, e nele, o “modernismo, a vanguarda e a cultura de massa entraram em uma instância de relações mútuas e figurações discursivas (...), as quais são claramente distintas do paradigma do alto modernismo”. Nesse novo contexto, a defesa de uma dicotomia alta / baixa arte não conseguiu mais se sustentar.

Com o aprofundamento da crítica à divisão alta/baixa arte e a imposição do paradigma pós-moderno, os estudos culturais encontraram o espaço necessário para sua própria institucionalização acadêmica, como enfatizado por Francis Mulhern (1995: 31): “[e]ntre os fenômenos intelectuais mais marcantes dos chamados tempos pós-modernos está a emergência, nas principais academias, da nova disciplina dos estudos culturais”. Toda uma estrutura envolvendo programas de especialização e pós-graduação, professores treinados na disciplina, associações profissionais, conferências com alta média de público, editoras que publicam incessantemente temas relacionados ao assunto, demonstram a força e a organização dos estudos culturais.

Mesmo com todos os problemas causados pela institucionalização2, os estudos culturais constituíram-se como um campo forte dentro da academia, e isso reforçou o embate com os estudos literários, no qual o questionamento do cânone é apenas mais um sintoma. Apesar da preferência pela produção literária popular, Williams e Hoggart sustentavam a idéia de que os estudos de cultura envolvem o estudo de todos os textos, tantos os “literários” —significando a alta literatura—quanto os populares. No entanto, no seu primeiro impulso, os estudos culturais “apartaram-se da literatura em direção à cultura, ainda entendida num sentido essencialmente leavisiano como não-literatura” (Milner, 1996: 18). Para Milner, esses seriam os estudos culturais “modestos”, enquanto a visão mais ampla de Williams e Hoggart constituiriam a versão “imodesta” dos estudos culturais.

A institucionalização dos estudos culturais abalou os alicerces dos estudos literários como disciplina. A alegação mais comum entre os tradicionalistas é que o estudo da literatura corre o risco de ser engolfado pelos estudos culturais, tornando-se apenas mais um de seus campos de ação, o que significaria o fim de sua autonomia. Mesmo na versão “modesta” dos estudos culturais, que excluem a categoria do literário, a integridade disciplinária dos estudos literários também é ameaçada, uma vez que os estudos culturais “se transformariam em um potente rival na competição acadêmica por estudantes, recursos, etc” (Milner, 1996: 19). Assim, ao invés do temor de se tornar mais um anexo dos estudos culturais, o maior risco para os estudos literários é o de perder a disputa e ser alijado da cena acadêmica. Essa, inclusive, é a previsão mais pessimista de Harold Bloom em O Cânone Ocidental. Para ele, toda a tradição literária que nos legou autores como Shakespeare, John Milton, Goethe, Neruda, Beckett, Kafka, entre outros, está sendo minada pela onda do politicamente correto e pelo alcance cada vez maior dos estudos culturais na academia. Na sua “conclusão elegíaca”, Bloom (1994: 519) acredita que os estudos literários, na definição tradicional, não sobreviverão ao redimensionamento do literário provocado pelo que ele denomina “Escola do Ressentimento”, composta por feministas, marxistas, lacanianos, novos historicistas, desconstrucionistas e semiotistas (Bloom, 1994: 527). O erro fundamental dessas escolas teóricas, na visão de Bloom, é fazer uma leitura política da literatura, minando a primazia do estético (Lawrence, Guttridge, 1994: 23).

Para Bloom, o cânone ocidental representa o exercício da memória, sem a qual o
conhecimento não é possível. Na sua definição, o cânone é “a verdadeira arte da
memória, a autêntica fundação do pensamento cultural” (Bloom, 1994: 35). O motivo da existência de um cânone literário é a necessidade de “impor limites, de definir um padrão de medida, que não pode ser político, nem moral” (35). Pela sua natureza secular, o cânone nunca poderá ser fechado, portanto; falar em “abertura” do cânone é, para Bloom, uma questão redundante. Ele é contra tal abertura porque, para ele, os postulantes da Escola do Ressentimento querem introduzir um padrão de medida político e moral, o que contraria a própria idéia de cânone. A conseqüência dessa postura, na visão de Bloom (1994: 35), é a destruição “de todos os padrões estéticos e intelectuais nas ciências humanas e sociais, em nome da justiça social”. Não há dúvidas que, para Bloom, a literatura não pode ser subordinada a nenhuma ideologia e que a valorização da escrita literária depende, em grande parte — senão totalmente — da obra em si.
Shakespeare é a figura central no cânone de Bloom porque sua escrita é uma escrita “forte”, capaz de nos lembrar “não só o que acontece em Hamlet, mas o que acontece na literatura que a faz memorável” (1994: 39). As idéias de Bloom em O Cânone Ocidental geraram inúmeras respostas, pró e contra. Obviamente, os membros que ele chama Escola do Ressentimento não tardaram a acusar Bloom de elitista e de defender uma idéia de literariedade que refuta qualquer ligação com um contexto político e social.

Milner cita Outside Literature de Tony Bennet, professor de ciências humanas na Griffith University na Austrália, como o reverso da teoria Bloomniana de cânone e literatura. Bennet critica a estética literária do ponto de vista dos estudos culturais. Para Bennet, segundo Milner (1996: 24), “o reconhecimento da construção social da literatura leva a um tipo de populismo cultural que vai deliberadamente contra a literatura e em direção (..) aos estudos culturais modestos”. Na visão de Bennet, o discurso estético é apenas mais um entre outros discursos de valor. Nesse contexto relativista, a idéia de cânone literário e o seu estabelecimento não se sustentam.

Da maneira como o debate entre estudos culturais e literários se apresenta, parece que o caminho a seguir é a opção entre um ou outro. Defender a literatura significa ir contra os preceitos dos estudos culturais, e vice-versa, articular análises
dentro desses preceitos significa romper com toda uma tradição literária. Milner sugere (e eu concordo com ele) que a versão imodesta dos estudos culturais, postulada por Raymond Williams e que inclui os textos literários, seria a versão que melhor trabalharia a relação entre a arte e a sociedade, precisamente porque, ao incluir textos literários, não privilegiaria nem um nem outro. Esse pressuposto equilíbrio parece ser o que incomoda os defensores da literatura, porque ele promove um deslocamento da mesma: ela deixa de ser um discurso privilegiado, colocado em um pedestal, para se incluir entre os demais discursos e práticas que operam dentro da cultura.

Obviamente, a perda desse status não poderia acontecer sem protestos e, mesmo
que posições extremas sejam atingidas, é inegável que há um saldo positivo envolvendo esse debate. A necessidade de definir se o que estamos fazendo hoje nos departamentos de literatura pertence ao âmbito dos estudos literários ou estudos culturais levou a um redimensionamento da própria literatura, uma vez que demandou novas maneiras de definir e localizar os estudos literários. Seria utópico pensar que a relação estudos literários/estudos culturais poderá vir a ser pacífica um dia.

Também não creio que isso seja desejável, porque a partir dessa tensão que tanto incomodou e incomoda os estudiosos de literatura, novas formas de pensar o literário podem se constituir, conferindo dinamismo à disciplina e evitando a fossilização de conceitos, teorias e práticas, o que não pode deixar de ser visto como um resultado positivo desse questionamento. Resta saber se é necessário lamentar e temer, como Bloom, o fim de uma maneira de se definir literatura, literariedade e crítica literária em face dos estudos culturais. Esse deslocamento, certamente não foi o primeiro, e não será o último. Encarar e teorizar essa mudança se coloca como um dos desafios aos que se dedicam à construção do discurso literário. Nesse contexto, a reflexão sobre o cânone se configura como mais uma importante conseqüência desse repensar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bloom, Harold. The Western Canon. New York: Harcourt Brace, 1994.
Gabel, John, Wheeler, Charles B., York, Anthony D. The Bible as Literature: An
Introduction. 3. Ed. New York: Oxford University Press, 1996.

Guillory, John. “Canon”. In: Lentricchia, Frank; McLaughlin, Thomas (Ed.) Critical
Terms for Literary Theory. 2. Ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
p. 233/249.

Huyssen, Andreas. After the Great Divide: Modernism, Mass Culture, Postmodernism.
Bloomington: Indiana University Press, 1986.

Lawrence, Tim; Guttridge, Peter. Reloading the Ancient Canon. 21 Nov. 1994. [on
line]. Disponível em http://www.elibrary.com. 31 de Jul. 2000. p. 23.

McDonald, Lee M. The Formation of the Christian Biblical Canon. 2. ed. Peabody,
MA: Hendrickson, 1996.

Milner, Andrew. Literature, Culture and Society. New York: New York University
Press, 1996.

Mulhern, Francis. The Politics of Cultural Studies. Monthly Review. V. 47. 17 Jul. 1995.
[on line]. Disponível em http://www.elibrary.com. 31 de Jul. 2000. p. 31-41.

Williams, Raymond. The Politics of Modernism. London, New York: Verso, 1996.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Trecho de resenha sobre livro de M Chauí



BRASIL: MITO FUNDADOR E SOCIEDADE AUTORITÁRIA
BRAZIL: FOUNDATIONAL MYTH AND AUTHORITARIAN SOCIETY
Autora: Marilena Chauí
Resenhado por: Winifred Knox

Marilena Chauí nasceu em São Paulo, em 1941, cursou Filosofia e fez mestrado na Universidade de São Paulo (USP); doutorou-se na França, defendendo tese em 1971; em 1977 aconteceu a defesa de sua tese de livre docência. Em 1987, fez concurso e tornou-se professora titular de Filosofia da USP. É membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a década de mil novecentos e oitenta. A autora tem também participado ativamente das discussões sobre educação e cultura em algumas gestões do PT, inclusive na atual, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Elaborar resenha de um de seus livros é uma tarefa ousada, pois Chauí tem se notabilizado por sua capacidade de escrever sobre complexas questões filosóficas, trazendo fundamentos básicos de Filosofia para iniciantes na arte do pensamento dessa ciência. Isto denota sua capacidade de escritura. O que é Ideologia, um de seus livros com mais de cem mil cópias vendidas, e Convite à Filosofia são os que mais a popularizaram. Mas, Chauí tem escrito também sobre política, cultura popular e democracia, além de outros temas, tendo dois grandes trabalhos filosóficos/acadêmicos sobre Merleau Ponty e Espinosa.

... Este livro (Brasil...) foi escrito no momento em que o país pensava em festejar 500 anos de descobrimento. No entanto, a autora inverte a questão indagando ao leitor sobre o que realmente se deveria comemorar naquele quinto centenário de descobrimento. Para ela, o mito fundador do Brasil, revestido de diversas formas no pensamento social, ao longo da historia brasileira fornece a base para as comemorações, porém trata-se de uma criação ideológica formulada para impor uma visão de mundo que beneficia alguns poucos brasileiros.

Então, já no primeiro capítulo, Com fé e orgulho, a autora explica a idéia de mito que a está guiando na elaboração do livro. O mito é entendido não só no sentido etimológico do termo (mythos – narração pública de feitos lendários de uma comunidade), mas também em sentido antropológico, como uma espécie de narrativa utilizada para explicar, entender, ou ainda justificar determinada realidade, solução imaginária para tensões, conflitos e contradições “que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” (p. 9).
.
Neste sentido, o mito pode ser compreendido na ideologia, ou seja, através das idéias produzidas com intencionalidade clara de mascarar a verdadeira situação de uma dada realidade. Chauí mostra uma série de estereótipos produzidos pelo pensamento social através da literatura, dos escritos acadêmicos/científicos, dos discursos políticos, entre outros que vão sendo formados em uma representação de Brasil para os brasileiros. Assim, os brasileiros construíram, sobre si mesmos, formas de mitificação das representações que têm de si: o índio corajoso, os negros estóicos e os bravos e melancólicos portugueses cuja mestiçagem produziu, entre outras coisas, o samba.

O mito fundador é, dessa forma, compreendido como aquele que explica a origem ou a fundação de determinado povo e este é eternizado pela sua constante resignificação, a cada momento da história de um povo. Para argumentar, a autora lança mão de alguns mitos brasileiros, como a crença generalizada de que o Brasil é um dom de Deus e da Natureza, que tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor, ou ainda que é um país sem preconceitos. (p.8).
.
No segundo capítulo A nação como semióforo, a autora discute como o termo nação se constituiu historicamente até chegar à noção que adquire no século XX. No Brasil, o termo nação vai se constituir como um semióforo fundamental, um sinal que encarna o mito político ou religioso, um semióforo/matriz, que é produzido pelo poder político, através do apelo à identidade nacional. A idéia de identidade nacional opera um movimento que sai da consciência de si (das pessoas enquanto indivíduos) e de classe (das pessoas enquanto pertencentes a um lugar social relativo ao modo como se inserem no processo produtivo e reprodutivo na sociedade) para a idéia de consciência nacional, ou seja, há um despojamento dos sujeitos políticos e sociais, provocando um esvaziamento intencional que é diluído na idéia de nação. Ressalte-se que a idéia de nação, vista por esse ângulo, é percebida pela perspectiva do atraso ou do subdesenvolvimento, posto que a interpretação do Brasil é feita pela ausência, pelo que lhe falta, e não pelo que no país existe.
.
A invenção recente do termo nação como Estado-nação é usada como possibilidade de mobilização dos cidadãos através da religião cívica – seja o patriotismo, nacionalismo, ou o fascismo. A religião cívica é tão bem sucedida que pode ser percebida também no nacionalismo das esquerdas brasileiras dos anos de 1950 a 1960, todavia, com algumas diferenças, pois, para aquelas últimas, a referência é a divisão social de classes e não a unidade social imaginária, imposta pela idéia de nação.

Desde 1980, no entanto, as noções de nação e nacionalidade se deslocam para o campo das representações já consolidadas, servindo para legitimar nossa sociedade autoritária, e é neste contexto que a autora critica o semióforo construído como: Brasil 500 anos. Nos capítulos seguintes, a autora reflete sobre as várias formas que o semióforo Brasil se firma do século XIX ao século XX. O verde-amarelismo, no terceiro capítulo, é tratado via imagem celebrativa do país essencialmente agrário, imagem construída pela classe dominante brasileira que incorpora as idéias do Brasil colônia de exploração. Contudo, observa que, a partir de meados do século XX, o verde-amarelismo, criado pelas elites, é re-significado e passa a operar como compensação imaginária para a condição periférica e subordinada do país. É assim que o semióforo nação, através do verde-amarelismo, nada mais faz do que manter o mito fundador do Brasil.

Outra forma de construção e formação do semióforo Brasil se dá através da produção intelectual de sua elite, assunto abordado no capítulo quatro Do IV ao V centenário. Nesta direção, ela faz uma análise de trabalhos de alguns intelectuais, tais como: Afonso Celso (Visconde do Ouro Preto) em Porque me ufano de meu país; Euclides da Cunha em Os Sertões; Sílvio Romero em O Caráter nacional, As origens do povo brasileiro e a História da literatura brasileira. Analisa também algumas instituições, dentre as quais: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IBGE), criado em 1838, que desde então tem a tarefa de oferecer ao país um passado glorioso e um futuro promissor (p.50) e esta vem sendo realizada.
.
Em seu último capítulo O Mito Fundador, Marilena Chauí discorre sobre a forma como foi produzido o mito fundador do Brasil. Primeiramente, relacionado à Natureza, pois funda-se nela, desde o descobrimento do Brasil, em 1500, através da idéia do Paraíso na Terra, o Topos do Oriente como o Jardim do Éden, o que nos lança para fora do mundo da história concreta. Nessa perspectiva, a servidão voluntária é a forma de explicação, como também a justificativa da escravidão de negros e índios pelas elites, pelo mecanismo da naturalização da escravidão no Brasil Colônia. A segunda forma teria sido a sagração da história pela divinização dos governantes, que representam Deus, e não dos governados. O direito divino dos reis, juntamente com a sagração da história, pela concepção de tempo judaico - cristão adotada, na qual tudo está determinado por Deus. Essa forma acaba por destituir os sujeitos de sua subjetividade e ação. Assim, o mito engendra uma visão messiânica da política que possui como parâmetro o núcleo milenarista do embate cósmico final entre a luz e a treva, o bem e o mal, de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem) ou satanizado (treva e mal).
.
Na conclusão, Comemorar?, a ênfase dá-se pela dúvida. O título já sugere contundente desfecho da autora que faz, por conseguinte, uma reflexão sobre a sociedade brasileira. Fortemente verticalizada, e homogeneizadora das diferenças, em verdade, contraditoriamente à retórica, a sociedade brasileira vem impedindo as diferenças enquanto realizações das subjetividades ou como alteridade. Não há, finalmente, segundo Marilena Chauí, motivos ufanistas para comemoração do: Brasil 500 anos.
.
Pontuamos ainda que existem diferentes interpretações realizadas por outros autores sobre a miscigenação das raças no Brasil, que o colocam como terra de mestiçagem, no sentido positivo, afirmativo da identidade social. No entanto, o ponto de vista adotado por Chauí, neste livro, sobre a formação social do povo brasileiro, mostra que o debate ainda suscita uma profunda reflexão da qual longe estamos de esgotá-la plenamente nesta resenha. Portanto, reafirmamos que o livro, por sua linguagem acessível e argumentação veemente, fornece subsídios fundamentais para uma reflexão sobre questões que se encontram fecundas ainda no pensamento social brasileiro. Todavia, é um livro que poderíamos considerar indispensável a estudantes e professores e a todos que desejarem refletir acerca das raízes do Brasil.
...

Bibliografia Geral de Prática de Ensino


ALONSO, Mirtes (org.) et al. O Trabalho docente: teoria e prática. São Paulo: Pioneira, 1999.

ALARCÃO, Isabel (org.). Formação reflexiva de professores: estratégias de supervisão. Porto. Portugal: Porto Editora, 1996.

BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP / Imprensa Oficial do Estado, 1998.

FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão. Prática de texto para estudantes universitários. Petrópolis: Vozes, 2004.

CORACINI, Maria José. O jogo discursivo na sala de aula. Campinas, SP: Pontes, 1995.
FARIA, Maria Alice. Parâmetros curriculares e literatura. São Paulo: Contexto, 1998. (Coleção Repensando o Ensino).

FAZENDA, Ivani. O papel do estágio nos cursos de formação de professores. Campinas - SP: Papirus, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

KOMOSINSKI, Lionira M. G. Literatura nos Cursos de Letras. Erexim: Edifapes, 2001.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática, 2003.

MOISÉS, Lúcia Maria. O Desafio de saber ensinar. Campinas. São Paulo: Papirus, 1995.

MOITA LOPES, Luis Paulo da. Identidades fragmentadas: a construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. – Campinas, SP: Mercado de Letras, 2002.

NÓVOA, António. Os professores e sua formação. Lisboa - Portugal: Dom Quixote, 1992.

PIMENTA, S.G. (org.). O estágio e a docência. São Paulo: Cortez, 2004.

_____. O estágio na formação de professores: unidade teoria prática? São
Paulo: Cortez, 2001

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade no Século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São Paulo: Cortez , 2005.

SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2001.

ZABALZA, Miguel A. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artemed, 2004.

Duas Lendas






As lendas contribuíram bastante para a Literatura Brasileira, já que muitos de nossos romances foram escritos com base em algumas lendas típicas de nossa cultura. Podemos citar, por exemplo, romances de José de Alencar como Iracema, O guarani; de Mário de Andrade, como Macunaíma.

MACHADO, Irene. Literatura e redação. São Paulo: Editora Scipione, 1994, p. 105-106.

A LENDA DA VITÓRIA RÉGIA

A enorme folha boiava nas águas do rio. Era tão grande que, se quisesse, o curumim que a contemplava poderia fazer dela um barco. Ele era miudinho, nascera numa noite de grande temporal. A primeira luz que seus pequeninos olhos contemplaram foi o clarão azul de um forte raio, aquele que derrubara a grande seringueira, cujo tronco dilacerado até hoje ainda lá estava. “Se alguém deve cortá-Ia, então será meu filho, que nasceu hoje”, falou o cacique ao vê-la tombada depois da procela. “Ele será forte e veloz como o raio e, como este, ele deverá cortá-Ia para fazer o ubá com que Iutará e vencerá a torrente dos grandes rios... " Talvez, por isso, aquele curumim tão pequenino já se sentisse tão corajoso e capaz de enfrentar, sozinho, os perigos da selva amazônica. Ele caminhava horas, ao léu, cortando cipós, caçando pequenos mamíferos e aves; porém, até hoje, nos seus sete anos, ainda não enfrentara a torrente do grande rio, que agora contemplava. Observando bem aquelas grandes folhas, imaginou navegar sobre uma delas, e não perdeu tempo. Pisou com muito cuidado – os índios são sempre muito cautelosos – e, sentindo que ela suportava o seu peso, sentou-se devagar, e, com as mãozinhas improvisou um remo. Desceu rio abaixo. É verdade que a correnteza favorecia, mas, contudo, por duas vezes quase caiu. Nem por isso se intimidou. Navegou no seu barco vegetal até chegar a uma pequena enseada onde avistou a mãe e outras índias que, ao sol, acariciavam os curumins quase recém-nascidos embalando-os com suas canções, que falam da lua, da mãe d’água do sol e de certas forças naturais que muito temem. Saltando em terra, correu para junto da mãe, muito feliz com a façanha que praticara: – Mãe, tenho o barco. Já posso pescar no grande rio?– Um barco? Mas aquilo é apenas um uapê; é uma formosa índia que Tupã transformou em planta.– Como, Mãe? Então não é o meu barco? Você sempre me disse que eu um dia haveria de ter meu ubá...– Meu filho, o teu barco, tu o farás; este é apenas uma folha. É Naia, que se apaixonou pela lua...– Quem é Naia? – perguntou curioso o indiozinho.– Vou contar-te... Um dia, uma formosa índia, chamadaNaia, apaixonou-se pela lua. Sentia-se atraída por ela e, como quisesse alcançá-la, correu, correu, por vales e montanhas atrás dela. Porém, quanto mais corriam, mais longe e alta ela ficava. Desistiu de alcançá-la e voltou para a taba. “A lua aparecia e fugia sempre, e Naia cada vez mais a desejava.” “Uma noite, andando pelas matas ao clarão do luar, Naia se aproximou de um lago e viu, nele refletida, a imagem da lua.”Sentiu-se feliz; julgou poder agora alcançá-la e, atirando-se nas águas calmas do lago, afundou. “Nunca mais ninguém a viu, mas Tupã, com pena dela, transformou-a nesta linda planta, que floresce em todas as luas. Entretanto uapê só abre suas pétalas à noite, para poder abraçar a Iua, que se vem refletir na sua aveludada corola. “– Vês? Não queiras, pois, tomá-la para teu barco. Nela irás, por certo, para o fundo das águas.”“Meu filho, se te sentes bastante forte, toma o machadoe vai cortar aquele tronco que foi vencido pelo raio. Ele é teu desde que nasceste. Dele farás o teu ubá, então, navegarás sem perigo. “Deixa em paz a grande flor das águas...”Eis aí, como nasceu da imaginação fértil e criadora de nossosíndios, a história da vitória-régia, ou uapê,ou iapunaqueuapê, a maior flor do mundo.

A LENDA DO PAPAGAIO CRÁ-CRÁ

Conta a lenda que, antigamente, morava em um vilarejo um menino muito guloso. Tudo que via, queria comer, e a gula era tanta, a pressa de comer era tamanha, que ele tinha costume de engolir a comida sem mastigá-la.Uma vez sua mãe encontrou frutos de batoí e assou-os na cinza. O filho, sem querer esperar, comeu todos os frutos, tirando- os diretamente do fogo e, como sempre, engoliu-os sem pestanejar.Os frutos do batoí são frutos cuja polpa viscosa se mantém quentíssima por muito tempo. Comendo-os tão quentes, sapecaram-lhe a garganta, de forma que doía muito e queimavam-lhe o estômago.O menino, tentando vomitar os frutos comidos, começou a fazer força para expulsá-los. Arranhava a garganta grunhindo crá-crá-crá! Mas os frutos não saíam... e entalaram na garganta, sufocando-o.No mesmo momento, cresceram-lhe as asas e as penas e ele tornou-se um papagaio. Voou pra longe.Até hoje se pode ouvi-lo vagando pelas matas do lugar, voando e gritando “crá-crá-crá”!

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Sobre A Literatura em Perigo


COM RIGOR E COM AFETO


Tzvetan Todorov alerta sobre os males da instrumentalização da literatura

Marcos Pasche • Rio de Janeiro – RJ



A literatura em perigo

Tzvetan Todorov
Trad.: Caio Meira
Difel
96 págs.

Para Raquel Bello e Paula Alemand


A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver [...]. A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurda do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo.


A leitura do novo livro de Tzvetan Todorov, do qual foi extraído o vigoroso parágrafo, impulsiona-me à escrita de um artigo livre de certa frieza dos textos impessoais. É por isso que começo relatando uma experiência vivida (não somente por mim, tenho certeza) assim que me formei em Letras e cheguei a um colégio para lecionar literatura no ensino médio.


Embalado pela excelente prática de ensino realizada na UFRJ, sob a regência do brilhante professor André Dias (que bem mais do que nos "ensinar" a maneira correta de apagar o quadro e transmitir a nós meia-dúzia de tolos eufemismos travestidos de respeito ao aluno, apresentou-nos livros de psicologia social, geografia, antropologia, além, é claro, de grandes obras literárias) e cônscio de que não poderia subverter completamente a estrutura curricular do colégio - não feita só de negatividades -, queria quebrar a idéia ainda muito forte de que as artes são matéria para ricos, loucos ou vadios.


Foi então que me dirigi a uma turma do segundo ano, tentando perceber como nossa disciplina era vista, torcendo para que houvesse ao menos uma ligeira simpatia (sabendo, claro, que alguns a ignorariam ainda que ela lhes fosse apresentada da melhor maneira possível). De acordo com o programa, no primeiro ano devem ser lecionados aspectos de teoria literária (literariedade, gêneros, figuras e funções da linguagem), a literatura dos colonizadores do século 16, o Barroco e o Arcadismo, ocupando, cada tópico, um bimestre do ano letivo. Para adolescentes que em média têm quinze anos e muita energia, não é a coisa mais recomendável (mais por conta da linguagem erudita). Mas eu cria que os poemas satíricos de Gregório de Matos, com suas depravações subentendidas, ou mesmo os sonetos de Cláudio Manuel da Costa, repletos de sofisticada carga afetiva, tivessem feito vibrar neles a veia que sempre vibra em todos os que passam a se interessar por literatura, dizendo ser possível conceber o mundo de outra maneira, mais real e transfigurada a um só tempo.


Só que para a minha surpresa, isso não havia sido passado a eles. A própria professora do primeiro ano me informou que necessitou trabalhar com ênfase a teoria, alongando-se, segundo a própria, em versificação e classificação poética, a fim de que eles aprendessem a diferença entre as rimas internas e as encadeadas, entre o idílio e a écloga. Não houve como não pensar que vários leitores foram assassinados antes mesmo de nascerem, pois eles haviam visto uma abstração enfadonha até mesmo para professores.


Automaticamente somei o ocorrido ao estágio que havia feito num colégio público antes de me formar. Na ocasião (2006), não havia mais a disciplina literatura nas grades disciplinares dos colégios estaduais fluminenses de ensino médio (sim, ela fora varrida do mesmo modo que haviam sido filosofia e sociologia), e a professora da turma em que me instalei alternava as disciplinas por bimestre. Ou seja, no primeiro e no terceiro foram ministradas aulas de português; no segundo e no quarto, de literatura. E o secretário estadual de educação da época dessa aberração (governo de Rosângela Matheus) era Arnaldo Niskier, professor e membro da Academia Brasileira de Letras. Um grande mal estava feito, e empreendido por ditos homens de bem...


E é contra esse mal, o da mera instrumentalização das letras (fator de sua marginalização), que se edifica A literatura em perigo, do professor e crítico búlgaro-francês Tzvetan Todorov, livro denunciador dos problemas decorrentes do ensino de literatura, e restaurador do item que está na base das grandes obras estéticas e no cerne do pensamento dos seus espectadores: o amor pela arte.


Roupa suja que não se lava em casa


Num inteligente prólogo, o tradutor do livro e poeta Caio Meira relaciona a discussão do pensador francês ao ambiente universitário brasileiro. Se pensarmos que em sociedades da Grécia os poetas eram convocados para avalizar ou não a decisão de um governante, serão mais desoladoras as palavras de Caio:


Para Todorov, o perigo que hoje ronda a literatura é o oposto [em relação à opinião de Platão, para quem a poesia intervinha na formação do espírito]: o de não ter poder algum, o de não mais participar da formação do indivíduo, do cidadão.


Diante disso, é prática comum entre os que dela discordam a procura pelos culpados de sua disseminação. Fosse formulado um debate, os alvos seriam altamente previsíveis: a política educacional dos governos e a universidade, aqueles por negligenciarem os investimentos numa área essencial para o desenvolvimento e a soberania do País, a educação; esta por tecnicizar excessivamente a literatura, negando ou diminuindo a espontaneidade e a subjetividade de que tanto a produção quanto a análise artística sempre dependeram. "O caminho tomado atualmente pelo ensino literário (...) dificilmente poderá ter como conseqüência o amor pela literatura", diz o próprio Todorov.


Caio Meira esgarça a questão, e, ao falar dos estudantes dos cursos de Letras, faz-nos perceber uma mentalidade construída pelo mercado e absorvida, voluntária ou coercitivamente pelos que desejam uma formação meramente técnica, voltada para o mesmo mercado de trabalho. Diz o prefaciador:

Tomemos como exemplo os alunos dos cursos de Letras das universidades brasileiras: boa parte, com idades que variam em torno dos 20 anos, pouco ou quase nada leu de nossos romancistas ou poetas. Quase nenhum deles ouviu falar de Baudelaire, Edgar Allan Poe, Goethe, Fernando Pessoa, e raríssimos os leram. Esses alunos chegam à Faculdade de Letras em busca de especialização numa língua estrangeira ou de se tornarem professores de Português. Por outro lado, não lhes falta capacidade intelectual ou espírito crítico. O fato é que, até esse momento, com raras exceções, a literatura - pelo menos de maneira direta, isto é, mediante a leitura de romances, contos, poemas etc. - não participou da sua formação intelectual e afetiva, deixada, no que diz respeito à arte, bem mais a cargo do cinema e da música popular brasileira ou estrangeira (o que não quer dizer que não haja literatura na música ou no cinema...).


É de notar então que onde a literatura deveria ser celebrada e dignificada, ela também é submetida à marginalidade, virando mera peça decorativa, entretenimento esporádico ou veículo para estigmatizar como "porraloucas" ou "cdfs" os seus amantes. O próprio currículo disciplinar do curso de Português-Literaturas apresenta maior ênfase no ensino da língua. Evocando outra experiência, foi muito penoso para mim (e para tantos outros colegas) ter de estudar língua portuguesa - de forma geralmente rasa e insípida - por todos os oito períodos da graduação, sendo que decidi fazer Letras para estudar literatura. E foram apenas quatro os períodos para estudar as literaturas brasileira e portuguesa, e dois para estudar as africanas e literatura comparada (que é uma espécie de literatura geral do Ocidente).


Diante disso, não é difícil perceber que os literatos, já expulsos da república platônica, são também expulsos do lugar onde deveriam figurar como soberanos: as próprias faculdades de letras. Dificílimo então a busca de culpados, pois até mesmo muitos escritores têm feito de suas obras apenas exposições de conhecimento teórico, e a literatura preponderante entre nós (na prosa e na poesia), chamada vagamente de experimental, torna-se estéril na medida em que renuncia escavar os solos da existência.


Mais produtivo que assinalar culpados é conclamar os que podem mudar os fatos: os professores. Mas, pelo menos no Rio de Janeiro, eles têm como remuneração geral R$ 9,51 por hora de aula, e acabam não tendo tempo (ou estímulo) para a efetivação de novas práticas em sala de aula.


O humano no centro


O livro de Tzvetan Todorov é um manifesto contra os excessos críticos que retiram do fenômeno artístico (ou o diminuem) seu aspecto mais intenso, que é a capacidade de interferir na vida humana. Partindo da leitura do Boletim Oficial do Ministério da Educação (da França), do ano 2000, referente ao ensino da língua e da literatura daquele país, o autor fica indignado ao observar as diretrizes apresentadas no documento, todas voltadas para o conhecimento dos gêneros literários, a história literária, os tipos de discurso, etc.

O conjunto dessas instruções baseia-se, portanto, numa escolha: os estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem. Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.

Pode-se então pensar numa incoerência, pois Todorov é muito conhecido como um prócere do estruturalismo, tendência crítica que estudava a obra literária de maneira fechada, isolada em suas especificidades. No livro, o autor aponta que tal corrente, entre os anos de 1960 e 1970, foi a gênese desse mal, hoje sobressalente nos estudos universitários.


Mas ele mesmo se encarrega de explicar o impasse: as teorias têm por objetivo tornar o estudo da literatura mais abrangente e profissional, para fugir da mera apresentação de opiniões, sempre discutíveis pela subjetividade do gosto. É inegável, por exemplo, a contribuição que a sociologia, a psicologia e a história oferecem à crítica. O grande problema é a empresa, tão humana quanto a literatura, de validar uma verdade a partir do desmerecimento da outra. Ou seja, de acordo com certo pensamento, a crítica só poderia ser levada a sério caso não se restringisse ao mero impressionismo, devendo ser ele varrido dos estudos, o que é tão equivocado como acreditar na inutilidade das teorias.


No Brasil, essa discussão é muito forte nas universidades atualmente. Na Formação da literatura brasileira, Antonio Candido fala da peleja entre os esteticistas (contrários às teorias) e os historicistas (afeitos às mesmas). No caso, ele explica que durante muitos anos vigorou a idéia de que a literatura era um mero reflexo da história, servindo apenas para ilustrá-la. E no momento em que literatos reivindicaram a autonomia, a "solução" encontrada foi banir a história das pesquisas literárias. É o típico caso em que um exagero conduz ao outro, e ambos se afogam abraçados no poço das generalizações. A literatura passa a ter "donos", entre os quais se vêem menos escritores do que senhores feudais.


A literatura em perigo é um livro voltado decisivamente contra tais maniqueísmos, e toca em questões esquecidas pelos críticos, negligenciadas pelas teses, e diminuídas em congressos: as questões mais tocantes e envolventes que um texto literário pode nos apresentar, levando-nos à transcendência, sentindo ódio e paixão pela vida. "Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver", diz Todorov numa de suas páginas iniciais, nas quais nada há de auto-ajuda ou de pieguice romantizada.


O alerta do autor diz que a literatura está mecanizada, e ele grita para que os seus estudiosos não se esqueçam dos motivos pelos quais decidimos nos dedicar às artes, aqueles mesmos motivos que acendem nossas retinas diante de um texto tocante, os mesmos motivos que não raro nos fazem torcer o nariz para os cálculos, as fórmulas e as leis.



O AUTORTZVETAN TODOROV nasceu na Bulgária, em 1939, mas vive na França desde 1963, onde atua como professor e pesquisador de diferentes ciências humanas. Publicou A conquista da América - a questão do outro, As estruturas narrativas, entre outros.


TRECHO

O que o romance nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós; nesse sentido, eles participam mais da moral do que da ciência. O horizonte último dessa experiência não é a verdade, mas o amor, forma suprema da ligação humana.


Transcrito do Jornal Rascunho de Curitiba - PR

Seminários de Prática de Ensino II - 5a tarde


GRUPOS, DATAS E TEMAS - 5a tarde

Grupo 1 - 18/06 - A Tradição oral e o Conto popular
(Aline Gomes, Luciana, Tereza e Daniela)

Grupo 2 - 25/07 - O Conto maravilhoso e a Fábula
(Marcele)

Grupo 3 - 02/07 - Discurso narrativo, Lenda e Saga
(Aira)

Grupo 4 - 09/07 - Mito e Discurso indireto
(Adriana)

Grupo 5 - 09/07 - Romance
(Alessandra)

Grupo 6 - 16/07 - Tragédia
(Juliana)

Grupo 7 - 23/07 - Comédia e Conto (Diego e Everson)
(Gisele)

Grupo 8 - 30/07 - Conto e Crônica
(Amanda)

Seminários de Prática de Ensino III

DATAS E TEMAS - 6a manhã


19/06 - “Professor de Literatura: profissão (em) perigo”
(Queila)
26/06 - Cânone Literário
(Milena)

03/07 - “História da Literatura e Identidade Nacional Brasileira”
(Gianna)
10/07 - “A Indisciplina dos Estudos Culturais”
(Bruna M)
17/07 - Brasil. Mito fundador e Sociedade Autoritária.
(Romulo)
24/07 - A Literatura em Perigo
(Rosanne)

Seminários de Prática de Ensino III - 5a tarde

DATAS E TEMAS

18/06 - Brasil. Mito fundador e Sociedade Autoritária
(Alberto)
25/06 - "Professor de Literatura: profissão (em) perigo"
(Claudia)
02/07 - “História da Literatura e Identidade Nacional Brasileira” e
“A formação, os deslocamentos: modos de escrever
a história literária brasileira”
(Gisele)
09/07 - A Literatura em Perigo
(Aline)
16/07 - “A Indisciplina dos Estudos Culturais”
(Franciso)
23/07 - “O Ensino da Leitura: A Relação Entre Modelo e Aprendizagem”
(Mara)
30/07 - "Nas quebradas da voz"
(Bianca)

Entrevista com Harold Bloom



O crítico americano Harold Bloom diz que a ironia machadiana ainda não foi bem compreendida e que escritor segue pregando peças nos leitores. Para o autor de "O Cânone Ocidental", ironia machadiana era mais ampla do que ficou conhecida

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL



”Um milagre". Foi assim que o mais importante crítico literário do mundo, o norte-americano Harold Bloom, 77, classificou Machado de Assis quando elencou, em "Gênio - Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura" (ed. Objetiva, 2002), os melhores escritores do mundo segundo seus critérios e gosto particular. Fã do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), Bloom conta que percorreu as páginas de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" atrás de rastros da influência do autor de "Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy" (Companhia das Letras, 1998).


Adoecido e com dificuldades de locomoção, Bloom diz que tem na literatura hoje um consolo, e que lembrar Machado de Assis é trazer à memória novamente os momentos em que se divertiu com seus personagens. "Li "Brás Cubas" há muitos anos, lembro do modo peculiar como estão separados os capítulos, mas, melhor do que isso, recordo ter dado risadas a cada página", conta o crítico. Por causa dos problemas de saúde, Bloom está temporariamente afastado das aulas na Universidade Yale, onde leciona há quase duas décadas. Bloom sempre se manteve distante com relação a certa tendência -percebida desde os anos 60- de críticos e intelectuais que classifica como "a escola do ressentimento". Seriam estes responsáveis por ver a literatura a partir de contextos políticos e ideológicos. E que, por meio de uma interpretação multiculturalista -e principalmente de cunho marxista ou feminista- incluiriam no "cânone literário" autores menores, apenas para abranger minorias políticas ou de gênero. Essa corrente, expôs Bloom em seu "O Cânone Ocidental" (ed. Objetiva, 1995), acaba por diminuir o valor puramente estético das obras literárias. O crítico popularizou-se nos anos 70 por conta do conceito de "angústia da influência", teoria que via a tradição literária como um ciclo, no qual os novos escritores se relacionam de forma ambígua com seus precursores na tentativa de chegar à própria originalidade.


Em "Gênio", o escritor fugiu de classificações em voga no meio universitário e, como uma espécie de provocação, agrupou os escritores escolhidos em uma classificação inusitada, sugerida pela cabala. Machado surge no conjunto denominado "Yesod", que, numa tradução livre, significa "fundação". Com ele estão o francês Gustave Flaubert, o português Eça de Queirós, o argentino Jorge Luis Borges e o italiano Italo Calvino. Todos considerados por ele como "ironistas trágicos".
Bloom classifica Machado como o "Laurence Sterne do Novo Mundo". Apesar disso, ressalta que a atmosfera construída por Machado em seus romances era sempre muito original, a despeito da força da influência do irlandês em sua obra. De "Brás Cubas", Bloom diz que, apesar de retratar criticamente a sociedade carioca do século 19, Machado não a ataca diretamente, preferindo uma "alienação" e uma "frieza misteriosa" que dirigem o olhar do protagonista. "O verdadeiro tema de Machado é a nossa mortalidade", conclui, em "Gênio". Leia, abaixo, a entrevista que o autor concedeu ao Mais!, por telefone, de New Haven, Connecticut, onde vive.

FOLHA - Em "Gênio", Machado de Assis é incluído na categoria "Yesod", da cabala, relacionada à idéia de "fundação", mas também do equilíbrio entre homens e mulheres na natureza. Pode explicar melhor?


HAROLD BLOOM - O tema principal dos textos de Machado são as relações entre homens e mulheres. São sobre isso seus melhores livros. Laurence Sterne também foi um dos maiores mestres mundiais no tratamento de temas familiares. E é dele que Machado saca, quase explicitamente, sua principal influência. Em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", que considero seu melhor livro, ele retrata essa tentativa de equilíbrio dentro de uma sociedade muito específica, a do Rio de Janeiro e do Brasil do século 19. Machado é um fundador no sentido de que não havia surgido, ainda, no Brasil, um escritor desse talento que retratasse uma época com tanta lucidez.

FOLHA - Pelos seus escritos, conclui-se que a influência de Sterne é o que define sua atração por Machado. Como ela se manifesta?


BLOOM - Há muitos escritores no mundo influenciados por Sterne. Um deles, certamente, é Charles Dickens (1812-1870). Principalmente em seus primeiros trabalhos, como "The Pickwick Papers" (1836).A relação de Machado e Sterne me fascina porque a obra do brasileiro dialoga com a do britânico na sua superfície, mas diferem em coisas essenciais. Sterne é um cristão e um moralista clássico. E a grande força de Machado é de ter sido um realista muito particular.É difícil perceber qual dos dois é mais extremo em suas convicções. Machado não acreditava piamente em nenhum valor. Não era cristão, muito menos um moralista clássico.Acho genial o modo como Machado recebeu Sterne em seu estilo de escrita, mas nunca abraçou os seus valores. Para alguém que lida com o tema da influência, como eu, é fascinante ver esses vínculos entre autores no tempo.

FOLHA - O sr. já disse que não gosta tanto de "Dom Casmurro" como de "Brás Cubas". Isso porque o primeiro seria menos "sterniano"?

BLOOM - Ambos os livros são maravilhosos. Se prefiro "Brás Cubas" é por duas razões. Primeiro, porque gosto de procurar as pistas de Sterne nele. E depois, porque acho um livro divertidíssimo, absolutamente hilário. Machado é um grande romancista cômico.Tenho uma memória muito viva da obra, lembro que ri em quase todas as páginas, mesmo tendo-a lido há tanto tempo. É um livro muito engraçado! Meu crítico favorito, Samuel Johnson (1709-1784), uma vez disse que o legado de "Tristam Shandy" não duraria. Ele estava errado, isso aconteceu, e esse herdeiro é Machado. "Dom Casmurro" tem a mesma grandeza de "Brás Cubas", mas não a mesma alegria. O fato de também ser escrito em primeira pessoa confere-lhe um brilhantismo que não surge nos seus textos em terceira pessoa, que não são tão bons.


FOLHA - Em "Como e Por Que Ler" (ed. Objetiva, 2001), o sr. diz que "a perda da ironia é a morte da leitura, e daquilo que há de civilizado em nossa natureza". Pode explicar a célebre ironia de Machado de Assis dentro desse contexto?

BLOOM - Sim. Por um lado, creio no significado do que escrevi. Mas é preciso ressaltar que as pessoas reduziram, através dos tempos, Machado ao classificá-lo com um rótulo de "irônico" muito restrito.Sua ironia é como a de Geoffrey Chaucer (1343-1400) ou de Shakespeare (1564-1616). É algo maior, que não se trata apenas de um jogo de palavras, de uma troca inteligente de colocações em um diálogo, por exemplo. A ironia de Machado está na atmosfera na qual seus personagens e o próprio autor se movem. Quando ele é extremamente ofensivo, sabe que está sendo extremamente ofensivo, e gosta disso. Trata-se de uma marca especial de seu trabalho. Nós podemos sentir, enquanto estamos lendo, que Machado está se divertindo muito enquanto escreve.

FOLHA - Entre o senso comum, no Brasil, "Dom Casmurro" é mais popular do que "Brás Cubas". O sr. tem uma explicação?

BLOOM - Sim, é claro. Isso parece muito natural, pois trata-se de um livro que oferece algo a que alguém possa se agarrar com mais facilidade, uma intriga, um mistério, um clima de suspense que são fascinantes.

FOLHA - O sr. acha que Capitu é culpada ou inocente?

BLOOM - Antes de tudo, acho-a uma grande invenção. Mas não se deve deixar que ela obscureça as outras grandes mulheres que Machado criou, como a própria Virgília de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".

FOLHA - Falando em influência, há muita proximidade também entre as obras do português Eça de Queirós (1845-1900) e as de Machado. O que acha disso?

BLOOM - Essa foi a principal razão para que eu os colocasse lado a lado em "Gênio", na mesma categoria. Quando li "A Relíquia" (1887), imediatamente pensei: "Isso é Machado". Pelo estilo, pela humanidade profunda e vil dos personagens e no que ambos têm de descaradamente audacioso e agressivo. O que o protagonista do livro de Eça [Teodorico Raposo] faz com a tia é algo atormentador. Ao mesmo tempo, "A Relíquia" é hilariante, tem um humor parecido ao de Machado. Dizem que a obra mais importante de Eça é "Os Maias", mas eu não concordo. "A Relíquia" é o melhor que ele escreveu. Há também a grande coincidência de ambos terem sido escritos em português. Mas isso eu não sei explicar direito por que. Não conheço bem as particularidades da relação entre os dois países naquela época.


FOLHA - O sr. já veio ao Brasil?

BLOOM - Não, nunca. Tenho idéia de um lugar gigante, de um mundo à parte. Mais ou menos como vejo a China. É curioso dizer isso a alguém para quem o Brasil é uma realidade. Mas para mim é assim. Uma imagem. Um dos meus maiores arrependimentos é nunca ter ido ao Brasil. Agora sei que não haverá mais tempo.

FOLHA - O sr. trata Machado, desde o começo, como um escritor afro-brasileiro, "o maior literato negro surgido até o presente". No Brasil, até pouco tempo atrás não era comum que se admitisse de imediato que ele era negro. O sr. sabia dessa controvérsia antes de escrever?

BLOOM - Eu tive uma grande surpresa quando li o cubano Alejo Carpentier (1904-1980). Pensei que ele fosse negro, porque questões de raça estão de alguma forma colocadas, mesmo de modo sutil e às vezes inconsciente, em "El Reino de Este Mundo" (1949). Já a literatura de Machado não traz traço algum de raça. Então pensei que ele era branco e Carpentier, negro. Curiosamente, ao final, descobri que se tratava do contrário. Machado foi o maior escritor "afro" que conseguiu escrever na língua do Novo Mundo sem trazer a questão da raça para seus textos. A sensibilidade que teve para ver uma certa decadência do homem define sua escrita. Não uma decadência do ponto de vista negativo, mas como um dado posto. E isso está acima da questão racial.


FOLHA - Os escritores que o sr. perfila em "Gênio" ou no anterior "O Cânone Ocidental" habitam principalmente o século 19. Como o sr. relaciona Machado a seu século?

BLOOM - O século 19 foi profícuo em gênios literários porque veio depois do florescer altamente romântico do século 18.O tempo de Machado é o tempo de Oscar Wilde (1854-1900) e de uma imensa transformação no Ocidente. A ironia e a decadência estão por trás de toda a grande literatura produzida na época. Digo que Machado é um milagre porque incorpora isso, a que adiciona a digressão de Sterne.Machado pode ser considerado, no contexto histórico em que surgiu, um espanto e um milagre. Mas o que me encanta de forma mais particular é o fato de que ele estava, o tempo todo, pregando peças nos leitores e nele mesmo.