Numa Ciro
01 – Na escola pública não há um currículo escolar disponível para os alunos das periferias, como se pode encontrar nas escolas particulares. Nestas, os alunos com cinco anos de idade falam inglês e outras línguas, enquanto na favela o “caderno” do “pretinho” “é um fuzil, um fuzil”, como em “Negro Drama” (2002). Sobre esse problema, Mano Brown dá mais esta cartada, na entrevista à revista Rap Brasil.
A escola tem que renascer, essa que existe precisa morrer para nascer outra, outros padrões de comportamento, de ensino. Eu acho que hoje o professor deveria ser um educador, educar para viver, para economizar água, para não jogar comida fora, não dar R$ 800,00 num tênis da Nike, ensinar a viver, economizar dinheiro, lidar com dinheiro, respeitar a mãe, o pai. As pessoas já cansaram desse ensino básico, do dia do índio, Tiradentes, porque você não vê isso no dia-a-dia, não utiliza isso.
02 – Com base nessa crueldade, argumento que o rap encostou a literatura contra a parede que ela própria edificou: a diferença entre voz e letra, entre oral e escrito, foi tomada, pela literatura classicizante (Hollanda, 1976: 7-8), no sentido de desigualdade entre os valores. Sabemos que a oralidade foi banida da escrita até que, atualmente, um texto escrito é avaliado como perfeito quanto mais distante ele estiver da forma oral. Paul Zunthor (1993) orienta esse argumento ao dizer:
Quando nossa “literatura” se instaura, enfim, na época que chamamos de clássica, as diversas partes do discurso social serão dissociadas por causa de competências a partir daí descontínuas, política, moral, religiosa, ameaçando deixar uma lacuna que para a sociedade é vital preencher: a de um discurso homogêneo, apto a assumir o destino coletivo. A literatura vai desempenhar esse papel. Ela se tornará instituição. Vai exercer uma hegemonia, de fato, sobre as representações socioculturais que a Europa e depois a América formam de si próprias (Zunthor, 1993:284).
O que interessa verificar nesta tese são as conseqüências desse desempenho da literatura, como disse Zunthor, sofridas pelas populações que não tiveram acesso a esta instituição. Penso encontrar nas formações discursivas do rap as marcas dessa tradição e proponho que o rap abriu um canal para essas vozes que ficaram silenciadas pela obediência a esse monopólio de poder. A citação a seguir consta na orelha da capa da Antologia: Prosa e poesia periférica (2008).
Estudar pra quê? Se eu falo errado e escrevo pior ainda? Só tem um jeito de falar e um jeito de escrever! Isso é muito arriscado! Retraídos, com medo de riscar palavras, de arriscar ler nossas próprias palavras. Sem um espelho próprio que mostrasse como realmente somos, o espelho do outro nos refletiu imagens prontas. Histórias prontas. Iludidos, trocamos espelhos por histórias, e quando tentamos arriscar, já estava tudo definido. Devidamente escrito, não havia mais o que fazer. O certo e o errado, tudo no seu devido lugar. Arriscar era um erro, sem concordância, e sem acento.
03 – O movimento e /ou cultura hip hop tenta elaborar, através da linguagem artística, um discurso próprio, desligado do poder central e hegemônico das classes privilegiadas que possuem raízes em vários setores da organização social. O rap seria uma espécie de Teseu que adentra o labirinto da linguagem e luta de frente com a norma culta da língua, com o cânone literário, a crítica musical, o mercado fonográfico, etc.
Não podemos esquecer que o samba, nos primórdios de sua história também foi objeto de desconfiança e diferentes formas de menosprezo e perseguições. Em relação ao choro, que era aceito e tido como nobre, por exemplo, Cláudia Matos (1982) observou que: “Samba era coisa de preto e de pobre, e sem dúvida por isso mesmo estigmatizada”. A esse respeito, a autora cita uma fala de Pixinguinha que nos oferece o seguinte depoimento:
O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados (Matos,1982: 27).
04 – Para fazer o contracanto com o rap, ouviremos as vozes de alguns poetas e escritores das periferias, criadores de um movimento literário denominado Literatura Marginal... Sérgio Vaz, da Zona Sul de São Paulo, poeta e produtor cultural, criador do “Sarau da Cooperifa” e autor do projeto “Poesia contra violência”, diz que a literatura é uma dama triste que:
dentro do livro ou sob o cárcere do privilégio, ela se deita com Vitor Hugo, mas não com os Miseráveis. Beija a boca de Dante, mas não desce até o inferno. Faz sexo com Cervantes e ri da cara do Quixote. É triste, mas A Rosa do Povo não floresce no jardim plantado por Drummond (Encarte do CD do Sarau da Cooperifa).
05 – A psicanalista Maria Rita Kehl (1999) que esteve na banca dos entrevistadores de Mano Brown no programa Roda Viva (2007), escreveu um artigo que serve de orientação para pensarmos nessa relação do Racionais com as quebradas e com os manos:
O tratamento de "mano" não é gratuito. Indica uma intenção de igualdade, um sentimento de frátria, um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique consciente — não faça o que eles esperam de você, não seja o "negro limitado" (título de uma das músicas de Brown) que o sistema quer, não justifique o preconceito dos "racistas otários" (título de outra música). A força dos grupos de rap não vem de sua capacidade de excluir, de colocar-se acima da massa e produzir fascínio, inveja. Vem de seu poder de inclusão, da insistência na igualdade entre artistas e público, todos negros, todos de origem pobre, todos vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de oportunidades.
06 – O que Bourdieu coloca atinge o nó da questão: “O principal mecanismo de dominação opera através da manipulação inconsciente do corpo” (1996:269). Antes ele tinha dito algo que explica como é que esse mecanismo de dominação opera. “Quanto mais se desce na escala social”, mais as pessoas “acreditam em talento se em dons naturais, mais acreditam que os que alcançam êxito são dotados de capacidades intelectuais inatas”.
07 – A escuta e a leitura do material poético e literário das narrativas produzidas nas periferias me fez enxergar algumas implicações dessa “violência simbólica”. A estranheza que a forma, o estilo e o conteúdo das letras dos rap, dos textos poéticos e literários produzidos pelas periferias despertam nos falantes da norma culta. A propósito, quero adiantar o que nos diz Marcos Bagno[2]:
O preconceito lingüístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é o bolo, o molde de um vestido não é o vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática normativa não é a língua.
08 – Observei que esse giro do olhar foi em resposta a essa voz que chamo de voz política do rap. Política porque trouxe consigo novas formas de poder. Poder falar, poder escrever. O que vemos é que esses artistas estão reivindicando o seu direito de expressão. As dificuldades são muitas e uma delas é apontada por Marcos Bagno[3]:
Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta. Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua. Afinal, se formos acreditar no mito da língua única, existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua, que é a norma literária, culta, empregada pelos escritores e jornalistas, pelas instituições oficiais, pelos órgãos do poder – são os sem-língua[4].
09 – Esse processo histórico do qual resulta a distribuição desigual das terras e do conjunto dos bens materiais e simbólicos no Brasil, corresponde aos processos de construção da nação brasileira desde a expansão marítima dos reinos da Espanha e de Portugal, e a conseqüente colonização, de toda a América Latina, por ambos empreendida. Ninguém desconhece como se deu, nesse processo, o genocídio de mais de 5 milhões de índios, só no Brasil.
10 – Porém o que está ocorrendo no Brasil desde a passagem dos anos 70 para os anos 80, é o crescimento do nível de violência que já pode ser interpretada como uma barbárie de grandes proporções. Já vimos muitos gráficos das estatísticas sobre essa violência, e aprendemos com os especialistas em criminalidade e em políticas públicas a ler esses resultados. Mas prefiro que olhemos para esses dados através do corpus.[5] Esta chamada dos manos e minas no início da música, ao mesmo tempo é informativa, serve de alerta. Primeiro chamo atenção para estes versos, quando o rap manda olhar: “veja você quem morre/ veja você quem mata”. Depois, a resposta:
60% dos jovens de periferia
sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial.
A cada quatro pessoas mortas pela polícia
três são negras.
Nas universidades brasileiras
apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas
um jovem negro morre violentamente
em São Paulo
aqui quem fala é primo preto
mais um sobrevivente
[1] Tese de Doutorado defendida por Numa Ciro, em Março de 2009 na UFRJ, com orientação de Heloísa Buarque de Hollanda. Seleção de trechos: Nonato Gurgel.
[2] Bagno, 1999.
[3] Idem, p: 16.
[4] Grifo do autor.
[5]Rap “Capitulo 4 Versículo 3”.