Publicado originalmente no Portal Literal em 05/12/2003
por Heloisa Buarque de Hollanda.
Stuart Hall é hoje, no Brasil, um reconhecidíssimo nome da cultura acadêmica. Um dos fundadores da polêmica "pós-disciplina", os Estudos Culturais, Hall dirigiu o histórico Centro de Birmingham em seu período mais quente e produtivo. Jamaicano radicado desde 1951 na Inglaterra, onde é conhecido como um intelectual engajado nos debates sobre as dimensões político-culturais da globalização, a política nacional e a articulação teórica dos movimentos anti-racistas, ele tem dois livros publicados no Brasil: Identidades culturais na pós-modernidade e Da diáspora: identidades e mediações culturais.
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Nesta entrevista feita por telefone, Hall fala sobre o impacto da condição de imigrante jamaicano em sua produção intelectual, como nasceram os Estudos Culturais, porque não se preocupa em publicar livros, as perspectivas do engajamento do intelectual hoje e como ainda é possível se trabalhar criticamente a globalização.
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HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA e LIV SOVIK: Você deixou a Jamaica ainda como estudante e hoje é um dos intelectuais mais importantes da Inglaterra. Esse deslocamento da colônia para a metrópole deve ter marcado seu pensamento e atuação profissional. Isso confere?
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STUART HALL: Na realidade, essa história é crítica para mim. Tudo o que aconteceu a partir de minha decisão de não voltar para a Jamaica definiu meu destino e certamente minhas preocupações intelectuais. Eu saí da Jamaica mais de dez anos antes de sua independência. Toda minha formação foi, portanto, num cenário colonial. Minha história era a de um menino da colônia que vai para o centro da metrópole, para o lugar dos colonizadores. Essa foi a experiência de todos os escritores, pintores, artistas e intelectuais caribenhos que chegaram à Inglaterra nos anos 50/60. Uma experiência diferente do contexto dos anos 70, 80 e 90, das lutas dos negros contra o racismo, na Grã-Bretanha. Minha experiência não foi essa. Foi a de um jovem caribenho indo da colônia para a metrópole. Eu tinha lido Wordsworth. Eu sabia que havia daffodils nos campos, sabia a cor das coisas! O grande choque foi a descoberta da Inglaterra em si, de sua complexidade, que muito diferia do imaginário colonial. Já estou na Inglaterra por mais de 50 anos, casei com uma inglesa, meus filhos nasceram na Grã-Bretanha, e hoje vejo um país diferente. Hoje temos uma Inglaterra multicultural, mas minha relação com ela permanece a mesma. Conheço a Inglaterra e os ingleses como a palma de minha mão, mas jamais me consideraria um inglês. Sou formado pela relação de subordinação colonial a um Outro, à Grã-Bretanha. Quanto à Jamaica, é meu país perdido, onde já não me sinto em casa. A Jamaica é o que eu poderia ter sido, é o que poderia ter acontecido. Portanto, tenho uma relação muito romântica, muito nostálgica com a Jamaica. Meus amigos que ficaram tiveram experiências fortes como a da independência e das lutas dos anos 70, da transformação da Jamaica numa sociedade negra. Se a Jamaica já fosse uma sociedade negra quando parti, eu nunca teria ficado na Inglaterra. Teria voltado para casa. Sinto que não estou em casa em nenhum dos dois países, o que é, suponho, a causa da minha ênfase na noção de in-betweenness. É por isso que me interesso pelo fenômeno das diásporas, é por isso que me interesso por hibridizações, pelo que constitui a "casa", para a qual nunca se volta efetivamente.
STUART HALL: Na realidade, essa história é crítica para mim. Tudo o que aconteceu a partir de minha decisão de não voltar para a Jamaica definiu meu destino e certamente minhas preocupações intelectuais. Eu saí da Jamaica mais de dez anos antes de sua independência. Toda minha formação foi, portanto, num cenário colonial. Minha história era a de um menino da colônia que vai para o centro da metrópole, para o lugar dos colonizadores. Essa foi a experiência de todos os escritores, pintores, artistas e intelectuais caribenhos que chegaram à Inglaterra nos anos 50/60. Uma experiência diferente do contexto dos anos 70, 80 e 90, das lutas dos negros contra o racismo, na Grã-Bretanha. Minha experiência não foi essa. Foi a de um jovem caribenho indo da colônia para a metrópole. Eu tinha lido Wordsworth. Eu sabia que havia daffodils nos campos, sabia a cor das coisas! O grande choque foi a descoberta da Inglaterra em si, de sua complexidade, que muito diferia do imaginário colonial. Já estou na Inglaterra por mais de 50 anos, casei com uma inglesa, meus filhos nasceram na Grã-Bretanha, e hoje vejo um país diferente. Hoje temos uma Inglaterra multicultural, mas minha relação com ela permanece a mesma. Conheço a Inglaterra e os ingleses como a palma de minha mão, mas jamais me consideraria um inglês. Sou formado pela relação de subordinação colonial a um Outro, à Grã-Bretanha. Quanto à Jamaica, é meu país perdido, onde já não me sinto em casa. A Jamaica é o que eu poderia ter sido, é o que poderia ter acontecido. Portanto, tenho uma relação muito romântica, muito nostálgica com a Jamaica. Meus amigos que ficaram tiveram experiências fortes como a da independência e das lutas dos anos 70, da transformação da Jamaica numa sociedade negra. Se a Jamaica já fosse uma sociedade negra quando parti, eu nunca teria ficado na Inglaterra. Teria voltado para casa. Sinto que não estou em casa em nenhum dos dois países, o que é, suponho, a causa da minha ênfase na noção de in-betweenness. É por isso que me interesso pelo fenômeno das diásporas, é por isso que me interesso por hibridizações, pelo que constitui a "casa", para a qual nunca se volta efetivamente.
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HBH/LS: Você foi assistente de Richard Hoggart, quando o hoje histórico Center for Contemporary Cultural Studies, em Birmingham, foi fundado, e, pouco depois, tornou-se seu diretor. Como você se sente tendo sido praticamente o "fundador" dos Estudos Culturais, uma disciplina hoje tão polêmica?
HBH/LS: Você foi assistente de Richard Hoggart, quando o hoje histórico Center for Contemporary Cultural Studies, em Birmingham, foi fundado, e, pouco depois, tornou-se seu diretor. Como você se sente tendo sido praticamente o "fundador" dos Estudos Culturais, uma disciplina hoje tão polêmica?
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HALL: Quando criamos o Centro, os Estudos Culturais não existiam e não era nosso projeto criá-los. Procurávamos apenas abrir uma área de pesquisa e estudos críticos. Essencialmente como uma área transdisciplinar. Nunca pensamos em criar uma disciplina que substituísse as outras. É ainda assim que vejo hoje os Estudos Culturais. Necessariamente transdisciplinar. Necessariamente com posições críticas em relação ao que as outras disciplinas fazem ou não fazem ou não podem mais fazer. Acho que os Estudos Culturais são uma área polêmica porque está sempre atenta para o que está se fazendo nas outras disciplinas, o que se pode retirar delas para a crítica da cultura e o que nelas deve ser deixado de lado. Não me vejo como o pai dos Estudos Culturais, eu não criei o Centro. Nós trabalhamos com figuras como Edward P. Thompson, Richard Hoggart e Raymond Williams, mais velhos do que eu, mais Estudos Culturais do que eu... Aliás, até hoje, 20 anos depois, não sinto nenhuma vontade de dizer: "Isto é o que os Estudos Culturais são". Não sou patriótico em relação aos Estudos Culturais, nem me sinto responsável por eles. Trabalho ruim se faz em todas as disciplinas. Sei dizer o que se faz nessa área de importante, o que está na ponta, o que está abrindo novos campos de reflexão. Os Estudos Culturais não começaram sozinhos. Surgiram relacionados a outros movimentos da época como as políticas de cultura, o feminismo, os estudos multiculturais, sobretudo aos estudos pós-coloniais, enfim, a uma enorme gama de novos trabalhos críticos nas ciências humanas. Vejo os Estudos Culturais como um nervo forte dessa matriz.
HALL: Quando criamos o Centro, os Estudos Culturais não existiam e não era nosso projeto criá-los. Procurávamos apenas abrir uma área de pesquisa e estudos críticos. Essencialmente como uma área transdisciplinar. Nunca pensamos em criar uma disciplina que substituísse as outras. É ainda assim que vejo hoje os Estudos Culturais. Necessariamente transdisciplinar. Necessariamente com posições críticas em relação ao que as outras disciplinas fazem ou não fazem ou não podem mais fazer. Acho que os Estudos Culturais são uma área polêmica porque está sempre atenta para o que está se fazendo nas outras disciplinas, o que se pode retirar delas para a crítica da cultura e o que nelas deve ser deixado de lado. Não me vejo como o pai dos Estudos Culturais, eu não criei o Centro. Nós trabalhamos com figuras como Edward P. Thompson, Richard Hoggart e Raymond Williams, mais velhos do que eu, mais Estudos Culturais do que eu... Aliás, até hoje, 20 anos depois, não sinto nenhuma vontade de dizer: "Isto é o que os Estudos Culturais são". Não sou patriótico em relação aos Estudos Culturais, nem me sinto responsável por eles. Trabalho ruim se faz em todas as disciplinas. Sei dizer o que se faz nessa área de importante, o que está na ponta, o que está abrindo novos campos de reflexão. Os Estudos Culturais não começaram sozinhos. Surgiram relacionados a outros movimentos da época como as políticas de cultura, o feminismo, os estudos multiculturais, sobretudo aos estudos pós-coloniais, enfim, a uma enorme gama de novos trabalhos críticos nas ciências humanas. Vejo os Estudos Culturais como um nervo forte dessa matriz.
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HBH/LS: Você começa sua atividade crítica na literatura, na briga com o cânone literário, depois abre para estudos mais gerais sobre cultura e agora vemos um claro interesse seu focado na área das artes visuais. Como foi esse deslocamento de interesses?
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HALL: Tornei-me um estudante de Letras porque queria ser escritor. Em Oxford, onde me formei, eu odiava o clima de diletantismo literário que reinava por lá e antes de mais nada comecei tornando-me um crítico literário ferocíssimo da linha canônica de F. R. Leavis. Foi aí que comecei a trabalhar a relação entre o texto literário e o contexto histórico e social. Ao mesmo tempo, eu já era um modernista. O que me estimulava como escritor era ler T.S. Eliot e Ezra Pound, ouvir Stravinsky, ver Paul Klee, Picasso. O que me interessava era o modernismo. E em Oxford eu tinha que estudar a língua anglo-saxã da Idade Média, e na literatura, com muita sorte, chegava até o século XIX. Foi aí que, lendo F. R. Leavis, o New Criticism americano e envolvendo-me com Raymond Williams e com a crítica social, comecei a pensar: "Esse texto se relaciona com o quê?". Comecei a perceber que estudar literatura requeria sobretudo o entendimento de um contexto histórico e cultural mais amplo. Como entender Dickens? A Inglaterra como nação imperial, como país industrial, afinal o que estava no âmago da grande literatura que estudava? Ainda antes de me graduar, já me colocava essas questões. Comecei também a me envolver com jovens autores caribenhos que chegavam a Londres como, por exemplo, George Lamming, V.S. Naipaul. Naquela época eu conheci muitos deles, trabalhei com eles escrevendo um programa de rádio para a BBC, o "Caribbean Voices", sobre a literatura no Caribe. Quando entrei para a pós-graduação, pensei: o que preciso fazer é entender a diferença entre a cultura caribenha, de onde eu vim, e essa outra cultura que produz textos magníficos mas que são estudados de forma isolada, dentro de um cânone. Isso me trouxe de volta para o Caribe. Os Estudos Culturais começaram para mim, portanto, com o interesse nas culturas diaspóricas do Caribe. Foi aí que deslizei da literatura para a cultura. Quando realmente me engajei no trabalho com os Estudos Culturais, comecei a pensar sobre a mídia e a escrever sobre imagem e ideologia. Foi o interesse pela imagem que me levou ao meu atual interesse pelas artes visuais. E mais recentemente ando trabalhando a primazia do visual no discurso do racismo, porque a estrutura profunda do racismo não é uma questão visual, mas a aparência imediata é.
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HBH/LS: Temos agora no Rio de Janeiro um grande debate sobre a validade ou não da instalação de uma franquia dos museus Guggenheim na cidade. Como você vê essa expansão "imperialista" dos museus mundo afora?
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HALL: Curadores em Moscou, Havana e outros lugares vêm questionando a relação entre os países em desenvolvimento e esse circuito milionário onde o trabalho artístico adquire um valor comercial enorme no mercado de e se torna produtor de reputações artísticas nos centros reconhecidos do mundo. É muito importante que essa questão esteja em pauta nos lugares onde os países em desenvolvimento de alguma forma estejam se inserindo nesse circuito globalizado. Não quero ser elitista, não estou tentando menosprezar algo que abre a possibilidade para pessoas que não têm uma educação formal tradicional de experimentar a arte, responder à arte, entrar em contato com a arte. Essa democratização da arte e do fazer artístico é, com certeza, bastante positiva e progressista. Mas o tipo de relação que o termo "lazer" estimula é muito passiva. Os museus se tornaram parte de um circuito fashion. Não produzem desafios nem contestações fortes. Não estou contra o que está acontecendo. Que haja museus! No entanto, se apenas espetacularizam o passado, estão traindo sua missão contemporânea.
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HBH/LS: Seu novo livro publicado no Brasil, Da diáspora: identidades e mediações culturais, se esgotou em quatro meses, um verdadeiro recorde para uma publicação acadêmica. Antes você também já tinha um best-seller aqui, o Identidades culturais na pós-modernidade. Como você vê esse sucesso no Brasil?
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HALL: Antes de mais nada, esse sucesso é tão inesperado quanto incrível. Estou muito feliz com isso. Estive pensando nisso, e talvez esse sucesso se deva ao fato de que o Caribe tem uma relação com as culturais européias muito parecida com a do Brasil. E esse é o tema subjacente de quase todos os meus trabalhos. No fundo sempre escrevo sobre isso. É do que estou falando quando escrevo sobre a hibridização, sobre a creolização, sobre a diáspora. Creio que, no Brasil, as pessoas se sentem muito tocadas por esse tema.
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HBH/LS: Você nunca publica livros de sua autoria. Esta iniciativa tem sido sempre de outros que formam coleções de ensaios seus. Por quê?
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HALL: Porque eu não escrevo livros. Escrevo ensaios. Eu nunca escrevo pensando em publicar. Publico em resposta a convites quando alguém me pergunta: "você escreveu sobre tal coisa, posso publicar esse texto aqui na minha revista?". Isso acontece porque meus escritos são criados em função de situações concretas, são sempre intervenções. Estão sempre procurando redirecionar uma dada situação. São escritos estratégicos. Então, escrevo e publico geralmente em revistas ligadas aos movimentos sociais, culturais ou artísticos ligados aos temas de que trato. Só bem depois é que eles acabam sendo reeditados ou traduzidos e levados para circuitos mais amplos. Não poderia ser assim se tivesse uma carreira de escritor que publica. Por outro lado, se os Estudos Culturais são necessariamente transdisciplinares, eu não sou especialista em nenhum assunto. Quem ia querer ler um livro meu sobre um só assunto? Ainda que tenham um interesse comum, meus escritos são sobre temas muito diferentes. Não escrevi, por exemplo, uma teoria sobre Chris Ofili para seu catálogo. Escrevi sobre arte africana. Depois, a partir de minha participação no programa da Documenta de Kassel, escrevi sobre creolização. Acabei de escrever sobre Tony Blair e o New Labour para a revista "Soundings", porque quero intervir na situação da Inglaterra hoje. É assim que sinto o ato de escrever e publicar. E isto, a princípio, não dá livro...
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HBH/LS: Qual é papel que restou para o intelectual nos dias de hoje?
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HALL: Isso sim deveria ser um livro. Creio que ser intelectual hoje é dizer a verdade para o poder. É pensar as conseqüências do poder, aquilo que o poder não quer tratar, o que compõe o inconsciente do poder. Isso vale para os intelectuais críticos. Existem também os intelectuais tradicionais, como Gramsci os chamava. Os verdadeiros intelectuais ou são alinhados com o poder, tentam abrir seu caminho no mundo, ou têm uma relação crítica com o poder e precisam testá-lo, interrogá-lo e, sobretudo, expor as conseqüências propositais ou inconscientes do poder.
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* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e organizou o livro Da diáspora: identidades e mediações culturais (Editora UFMG, 2003).