domingo, 31 de maio de 2009

Professor de Literatura: Profissão (em) Perigo

Trabalho apresentado ao professor Gustavo Bernardo
no curso de Teoria da Literatura VI em 2005

Poliana Gomes

“Não sou nada. Nunca serei nada, não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

Fernando Pessoa


Findo o curso de bacharelado em Letras e prestes a me despedir, pelo menos temporariamente, de minha vida acadêmica, fui confrontada, durante as aulas da disciplina Teoria da Literatura VI – Literatura, Filosofia e Psicanálise, com a afirmação: “Ensinar literatura pode ser muito perigoso”.

O leitor deve estar pensando que não há nada demais nisto, afinal, é senso comum a idéia de que o ensino de literatura é um elemento fundamental na formação de indivíduos críticos, fato este que não agrada a muitos. Porém, não foi neste sentido e contexto que tal afirmação foi proferida. A palavra perigo utilizada diz respeito à forma como as sensações e sentimentos que a leitura provoca serão conduzidos pelo maestro: o professor.

Em outras palavras, a citação trouxe-me de volta uma antiga indagação sobre a formação de professores de literatura oferecida por nossa Academia. Assim, a partir desta afirmação intrigante e dois textos teóricos lidos durante a disciplina, a saber, Escrever e brincar, de Sigmund Freud e Esperando Kafka de Flusser, tecerei algumas considerações sobre a prática docente de ensino de literatura.

No entanto, para que isto seja possível, devemos ter em mente que a prática docente é um dos elementos da dinâmica escolar representada abaixo, na qual o professor representa um mediador importante entre o conhecimento, neste caso a Literatura e o aluno:


Retornaremos, posteriormente, a esta representação. Passemos, agora, ao primeiro texto. Em Escrever e Brincar¸ Freud compara a atividade do escritor criativo aos jogos lúdicos das crianças. Diz que o escritor, assim como a criança, cria um mundo de fantasias, mantendo, contudo, a separação entre realidade e ficção.

Segundo Freud, a arte destes escritores, ou seja, seus textos, proporcionam-nos o prazer de reviver esta dimensão primeira da infância, sem que tenhamos que nos envergonhar por isso.
Desta forma, se o que a literatura faz é simplesmente nos proporcionar a oportunidade de momentaneamente substituirmos a nossa fantasia pelo brincar, e se, ainda segundo Freud, dificilmente abdicamos de um prazer já experimentado, como explicar a aversão de tantos alunos pela literatura?

Acredito que o leitor tenha várias respostas hipotéticas para esta questão, mas como dito anteriormente, gostaria de me prender aqui, à hipótese da prática do ensino da literatura.
Se tomarmos por base que o professor é o responsável, na maioria das vezes senão sempre, por inserir o aluno no mundo das letras, na classe de alfabetização, e depois apresentá-lo ao que chamamos de Literatura, o professor possui um papel de peso na relação a ser estabelecida entre aluno e literatura.

Estes fatos explicam a representação utilizada anteriormente. O professor não se encontra entre o aluno e a literatura, mas sim em um patamar acima do aluno e sua relação com este é mais direta do que a existente entre aluno e literatura.
Concentremo-nos, então, no professor. A maioria das vezes, os aspirantes a professores não possuem a literatura como sua meta profissional, e a minoria das turmas de Letras que possui uma relação estreita e apaixonada com a Literatura encontra-se órfã.

Digo isto, pois, enquanto os mestres das disciplinas de Língua assumem desde o início que todos na sala virão a ser professores um dia, mesmo que isto não seja verdade, a mesma prática dificilmente é observada nos mestres de Literatura, que raramente trazem ao aluno questionamentos relacionados ao ensino de sua disciplina.
Desta observação desenrola-se a problemática: assumir que a prática do ensino de Literatura não se diferencia da prática do ensino de Língua. Pode-se dizer que nenhum curso, em nossa Academia, abrange a prática de suas ou uma de suas respectivas literaturas, pois, a única literatura que está inclusa nas aulas de Prática é a Literatura de Língua Portuguesa, no entanto, ela é oferecida em caráter facultativo. Cabe ao aluno escolher se quer praticá-la ou não (escolha esta que dificilmente se repete na vida profissional). Apesar destes fatos todos saem “habilitados” a serem futuro professores e a exercê-la.

Dito isto, prossigamos com nosso raciocínio. Em seu texto "Esperando Kafka", Flusser diz que existem duas formas de lidar com a literatura. Podemos olhá-la como uma resposta à época na qual foi produzida, ou como uma fonte de perguntas.

Sob este prisma, teríamos duas formas de lecionar a literatura. Na primeira a literatura é tratada dentro de um contexto histórico, a relação obra-autor é importante, assim como a leitura de críticas. Segundo Flusser, este caminho levaria à curiosidade.

Poderíamos, talvez chamar esta abordagem de mais tradicional, pois, é a mais comum entre os professores, além de lidar com o texto quase que em uma esfera de sacralidade.

Agora olhemos a segunda forma mencionada. Nesta abordagem, o texto é tomado como fonte de partida para vários questionamentos do leitor, o texto submerge o leitor em suas malhas. O principal aqui é a especulação. O texto é um provocador. Este seria o caminho da simpatia.

Voltemos então ao professor. Talvez, possamos dizer que, na maioria das vezes, os professores que acabam por dar aula de literatura tendem a seguir a primeira abordagem, enquanto aqueles que sempre desejaram ser professores de literatura tendem a seguir a segunda. Lógico que estamos generalizando a situação aqui.

Focalizemos agora estes últimos. A maioria destes professores são verdadeiros amantes da Literatura, frustrados por ver a forma como esta é tratada no sistema de educacional. São professores ávidos por despertarem em seus alunos o mesmo desejo que possuem pela Literatura.

E é neste ponto, caro leitor, que retomamos ao início de nossa conversa. A maioria destes professores se inspira no personagem John Keating de Robin Williams, no filme Sociedade dos Poetas Mortos. O professor John Keating é um ex-aluno da escola tradicionalista e tradicional onde vai lecionar. Frustrado pela forma com que a literatura é tratada, revoluciona suas aulas instruindo os alunos a rasgarem as primeiras páginas de seus livros e viverem a literatura.
Assim como ele, muitos dos nossos professores julga que a aversão dos alunos pela literatura é uma conseqüência da abordagem utilizada pelo professor.

E é neste momento que a prática se torna perigosa. Ao olharmos o personagem John Keating, sobre outra perspectiva, podemos vislumbrar as conseqüências de uma prática irresponsável do ensino de literatura. O professor, em sua posição de influência, estimula os alunos não a apreciarem a literatura, mas a vivenciarem a literatura, a transformarem em realidade suas fantasias. Todavia, ele não se coloca a disposição de os apoiar em seus intuitos.

O leitor pode estar pensando, então, que a melhor prática de ensino de literatura seria aquela calcada na primeira abordagem. Bem, não poderíamos dizer que na vida real assim como no filme, a existência de John Keatings é uma conseqüência desta prática tradicional? Que a omissão dos professores na academia, em formarem professores críticos quanto a sua prática, não contribui para esta atitude romântica? Não estaria a Academia, responsável pela formação destes profissionais, sendo tão leviana quanto os John Keatings?

A verdade é que assim como Flusser diz, as abordagens não ocorrem em separado. Pode-se enfatizar mais uma característica de uma ou de outra, mas “os dois campos não podem ser rigorosamente delineados”.Mas a questão em jogo, não é qual abordagem é a mais eficaz.Reformulemos a questão.

Freud diz, em Escrever e brincar, que a literatura “desperta-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes” e “a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes”.

Todo leitor de livros sabe do que Freud está falando, pois já se viu no conto “Felicidade Clandestina” de Clarice Lispector. Já parou de ler um livro por se identificar demais com um personagem, ou por acreditar não ter maturidade ainda suficiente para a leitura. Já riu, chorou, morreu, ressuscitou. Foi herói e vilão.

É ponto pacífico que a literatura exerce sobre nós um fascínio. Assim como é ponto pacífico que ler é algo íntimo, é a realização de nossas fantasias. Desta forma, lecionar literatura é estar exposto à intimidade do aluno.

Assim, pergunto: Como o professor deve proceder, então, para que a linha entre realidade e ficção não se quebre?

De que conhecimentos ou técnicas deve ele dispor para saber conduzir sua aula sem deixar esta se transformar em um mero pastiche de uma sessão de terapia de grupo? Como aproximar seus alunos da fantasia, sem, contudo, com isto dizê-los que podem transformar suas vidas em fantasias? Quais livros adotar? Como administrar sua leitura?

Em suma, como podem, os professores, alcançar seus objetivos e provocar em seus alunos curiosidade e/ou simpatia? Quais conhecimentos além do conteúdo literário, o professor necessita dispor para lecionar uma aula de literatura eficiente?

Talvez o leitor diga que este questionamento não é necessário já que o ensino de Literatura nas escolas está cada vez menor. Mas não seria esta desvalorização da literatura uma conseqüência da ineficácia das aulas? E, por conseguinte, a ineficácia destas aulas não seria uma conseqüência da má formação de seus profissionais?

Não acredito que os questionamentos levantados, aqui, tenham uma resposta fácil, e muito menos era meu intuito tentar respondê-los. Minha intenção era apenas especular sobre a complexidade do ensino de literatura.

Acredito que grandes mudanças tenham que ocorrer para que este quadro se reverta. Mudanças de postura e de currículo. Acredito que no mínimo, o futuro professor jamais poderia deixar a Academia sem ter sido confrontado com tais questionamentos.

Devo confessar, caro leitor, que não fosse o atraso de 6 meses entre a conclusão de meu curso de bacharelado e licenciatura, sairia da Academia talvez convencida de que minha idéia da falta de importância dada a Literatura neste espaço, não se passava de um problema interno meu, e estaria pronta a ser a mais nova Prof. John Keating, pronta a “converter” meus alunos em “amantes” da literatura.

A conclusão que consigo retirar disto tudo, por hora, e compartilhar com você, caro amigo leitor, é na verdade um adendo à citação provocadora de toda esta perturbação: ensinar literatura pode ser perigoso, mas não ensinar a ensinar literatura o é.