O crítico americano Harold Bloom diz que a ironia machadiana ainda não foi bem compreendida e que escritor segue pregando peças nos leitores. Para o autor de "O Cânone Ocidental", ironia machadiana era mais ampla do que ficou conhecida
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
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”Um milagre". Foi assim que o mais importante crítico literário do mundo, o norte-americano Harold Bloom, 77, classificou Machado de Assis quando elencou, em "Gênio - Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura" (ed. Objetiva, 2002), os melhores escritores do mundo segundo seus critérios e gosto particular. Fã do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), Bloom conta que percorreu as páginas de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" atrás de rastros da influência do autor de "Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy" (Companhia das Letras, 1998).
Adoecido e com dificuldades de locomoção, Bloom diz que tem na literatura hoje um consolo, e que lembrar Machado de Assis é trazer à memória novamente os momentos em que se divertiu com seus personagens. "Li "Brás Cubas" há muitos anos, lembro do modo peculiar como estão separados os capítulos, mas, melhor do que isso, recordo ter dado risadas a cada página", conta o crítico. Por causa dos problemas de saúde, Bloom está temporariamente afastado das aulas na Universidade Yale, onde leciona há quase duas décadas. Bloom sempre se manteve distante com relação a certa tendência -percebida desde os anos 60- de críticos e intelectuais que classifica como "a escola do ressentimento". Seriam estes responsáveis por ver a literatura a partir de contextos políticos e ideológicos. E que, por meio de uma interpretação multiculturalista -e principalmente de cunho marxista ou feminista- incluiriam no "cânone literário" autores menores, apenas para abranger minorias políticas ou de gênero. Essa corrente, expôs Bloom em seu "O Cânone Ocidental" (ed. Objetiva, 1995), acaba por diminuir o valor puramente estético das obras literárias. O crítico popularizou-se nos anos 70 por conta do conceito de "angústia da influência", teoria que via a tradição literária como um ciclo, no qual os novos escritores se relacionam de forma ambígua com seus precursores na tentativa de chegar à própria originalidade.
Em "Gênio", o escritor fugiu de classificações em voga no meio universitário e, como uma espécie de provocação, agrupou os escritores escolhidos em uma classificação inusitada, sugerida pela cabala. Machado surge no conjunto denominado "Yesod", que, numa tradução livre, significa "fundação". Com ele estão o francês Gustave Flaubert, o português Eça de Queirós, o argentino Jorge Luis Borges e o italiano Italo Calvino. Todos considerados por ele como "ironistas trágicos".
Bloom classifica Machado como o "Laurence Sterne do Novo Mundo". Apesar disso, ressalta que a atmosfera construída por Machado em seus romances era sempre muito original, a despeito da força da influência do irlandês em sua obra. De "Brás Cubas", Bloom diz que, apesar de retratar criticamente a sociedade carioca do século 19, Machado não a ataca diretamente, preferindo uma "alienação" e uma "frieza misteriosa" que dirigem o olhar do protagonista. "O verdadeiro tema de Machado é a nossa mortalidade", conclui, em "Gênio". Leia, abaixo, a entrevista que o autor concedeu ao Mais!, por telefone, de New Haven, Connecticut, onde vive.
FOLHA - Em "Gênio", Machado de Assis é incluído na categoria "Yesod", da cabala, relacionada à idéia de "fundação", mas também do equilíbrio entre homens e mulheres na natureza. Pode explicar melhor?
HAROLD BLOOM - O tema principal dos textos de Machado são as relações entre homens e mulheres. São sobre isso seus melhores livros. Laurence Sterne também foi um dos maiores mestres mundiais no tratamento de temas familiares. E é dele que Machado saca, quase explicitamente, sua principal influência. Em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", que considero seu melhor livro, ele retrata essa tentativa de equilíbrio dentro de uma sociedade muito específica, a do Rio de Janeiro e do Brasil do século 19. Machado é um fundador no sentido de que não havia surgido, ainda, no Brasil, um escritor desse talento que retratasse uma época com tanta lucidez.
FOLHA - Pelos seus escritos, conclui-se que a influência de Sterne é o que define sua atração por Machado. Como ela se manifesta?
BLOOM - Há muitos escritores no mundo influenciados por Sterne. Um deles, certamente, é Charles Dickens (1812-1870). Principalmente em seus primeiros trabalhos, como "The Pickwick Papers" (1836).A relação de Machado e Sterne me fascina porque a obra do brasileiro dialoga com a do britânico na sua superfície, mas diferem em coisas essenciais. Sterne é um cristão e um moralista clássico. E a grande força de Machado é de ter sido um realista muito particular.É difícil perceber qual dos dois é mais extremo em suas convicções. Machado não acreditava piamente em nenhum valor. Não era cristão, muito menos um moralista clássico.Acho genial o modo como Machado recebeu Sterne em seu estilo de escrita, mas nunca abraçou os seus valores. Para alguém que lida com o tema da influência, como eu, é fascinante ver esses vínculos entre autores no tempo.
FOLHA - O sr. já disse que não gosta tanto de "Dom Casmurro" como de "Brás Cubas". Isso porque o primeiro seria menos "sterniano"?
BLOOM - Ambos os livros são maravilhosos. Se prefiro "Brás Cubas" é por duas razões. Primeiro, porque gosto de procurar as pistas de Sterne nele. E depois, porque acho um livro divertidíssimo, absolutamente hilário. Machado é um grande romancista cômico.Tenho uma memória muito viva da obra, lembro que ri em quase todas as páginas, mesmo tendo-a lido há tanto tempo. É um livro muito engraçado! Meu crítico favorito, Samuel Johnson (1709-1784), uma vez disse que o legado de "Tristam Shandy" não duraria. Ele estava errado, isso aconteceu, e esse herdeiro é Machado. "Dom Casmurro" tem a mesma grandeza de "Brás Cubas", mas não a mesma alegria. O fato de também ser escrito em primeira pessoa confere-lhe um brilhantismo que não surge nos seus textos em terceira pessoa, que não são tão bons.
FOLHA - Em "Como e Por Que Ler" (ed. Objetiva, 2001), o sr. diz que "a perda da ironia é a morte da leitura, e daquilo que há de civilizado em nossa natureza". Pode explicar a célebre ironia de Machado de Assis dentro desse contexto?
BLOOM - Sim. Por um lado, creio no significado do que escrevi. Mas é preciso ressaltar que as pessoas reduziram, através dos tempos, Machado ao classificá-lo com um rótulo de "irônico" muito restrito.Sua ironia é como a de Geoffrey Chaucer (1343-1400) ou de Shakespeare (1564-1616). É algo maior, que não se trata apenas de um jogo de palavras, de uma troca inteligente de colocações em um diálogo, por exemplo. A ironia de Machado está na atmosfera na qual seus personagens e o próprio autor se movem. Quando ele é extremamente ofensivo, sabe que está sendo extremamente ofensivo, e gosta disso. Trata-se de uma marca especial de seu trabalho. Nós podemos sentir, enquanto estamos lendo, que Machado está se divertindo muito enquanto escreve.
FOLHA - Entre o senso comum, no Brasil, "Dom Casmurro" é mais popular do que "Brás Cubas". O sr. tem uma explicação?
BLOOM - Sim, é claro. Isso parece muito natural, pois trata-se de um livro que oferece algo a que alguém possa se agarrar com mais facilidade, uma intriga, um mistério, um clima de suspense que são fascinantes.
FOLHA - O sr. acha que Capitu é culpada ou inocente?
BLOOM - Antes de tudo, acho-a uma grande invenção. Mas não se deve deixar que ela obscureça as outras grandes mulheres que Machado criou, como a própria Virgília de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
FOLHA - Falando em influência, há muita proximidade também entre as obras do português Eça de Queirós (1845-1900) e as de Machado. O que acha disso?
BLOOM - Essa foi a principal razão para que eu os colocasse lado a lado em "Gênio", na mesma categoria. Quando li "A Relíquia" (1887), imediatamente pensei: "Isso é Machado". Pelo estilo, pela humanidade profunda e vil dos personagens e no que ambos têm de descaradamente audacioso e agressivo. O que o protagonista do livro de Eça [Teodorico Raposo] faz com a tia é algo atormentador. Ao mesmo tempo, "A Relíquia" é hilariante, tem um humor parecido ao de Machado. Dizem que a obra mais importante de Eça é "Os Maias", mas eu não concordo. "A Relíquia" é o melhor que ele escreveu. Há também a grande coincidência de ambos terem sido escritos em português. Mas isso eu não sei explicar direito por que. Não conheço bem as particularidades da relação entre os dois países naquela época.
FOLHA - O sr. já veio ao Brasil?
BLOOM - Não, nunca. Tenho idéia de um lugar gigante, de um mundo à parte. Mais ou menos como vejo a China. É curioso dizer isso a alguém para quem o Brasil é uma realidade. Mas para mim é assim. Uma imagem. Um dos meus maiores arrependimentos é nunca ter ido ao Brasil. Agora sei que não haverá mais tempo.
FOLHA - O sr. trata Machado, desde o começo, como um escritor afro-brasileiro, "o maior literato negro surgido até o presente". No Brasil, até pouco tempo atrás não era comum que se admitisse de imediato que ele era negro. O sr. sabia dessa controvérsia antes de escrever?
BLOOM - Eu tive uma grande surpresa quando li o cubano Alejo Carpentier (1904-1980). Pensei que ele fosse negro, porque questões de raça estão de alguma forma colocadas, mesmo de modo sutil e às vezes inconsciente, em "El Reino de Este Mundo" (1949). Já a literatura de Machado não traz traço algum de raça. Então pensei que ele era branco e Carpentier, negro. Curiosamente, ao final, descobri que se tratava do contrário. Machado foi o maior escritor "afro" que conseguiu escrever na língua do Novo Mundo sem trazer a questão da raça para seus textos. A sensibilidade que teve para ver uma certa decadência do homem define sua escrita. Não uma decadência do ponto de vista negativo, mas como um dado posto. E isso está acima da questão racial.
FOLHA - Os escritores que o sr. perfila em "Gênio" ou no anterior "O Cânone Ocidental" habitam principalmente o século 19. Como o sr. relaciona Machado a seu século?
BLOOM - O século 19 foi profícuo em gênios literários porque veio depois do florescer altamente romântico do século 18.O tempo de Machado é o tempo de Oscar Wilde (1854-1900) e de uma imensa transformação no Ocidente. A ironia e a decadência estão por trás de toda a grande literatura produzida na época. Digo que Machado é um milagre porque incorpora isso, a que adiciona a digressão de Sterne.Machado pode ser considerado, no contexto histórico em que surgiu, um espanto e um milagre. Mas o que me encanta de forma mais particular é o fato de que ele estava, o tempo todo, pregando peças nos leitores e nele mesmo.