quarta-feira, 3 de junho de 2009

Trecho de resenha sobre livro de M Chauí



BRASIL: MITO FUNDADOR E SOCIEDADE AUTORITÁRIA
BRAZIL: FOUNDATIONAL MYTH AND AUTHORITARIAN SOCIETY
Autora: Marilena Chauí
Resenhado por: Winifred Knox

Marilena Chauí nasceu em São Paulo, em 1941, cursou Filosofia e fez mestrado na Universidade de São Paulo (USP); doutorou-se na França, defendendo tese em 1971; em 1977 aconteceu a defesa de sua tese de livre docência. Em 1987, fez concurso e tornou-se professora titular de Filosofia da USP. É membro fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a década de mil novecentos e oitenta. A autora tem também participado ativamente das discussões sobre educação e cultura em algumas gestões do PT, inclusive na atual, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Elaborar resenha de um de seus livros é uma tarefa ousada, pois Chauí tem se notabilizado por sua capacidade de escrever sobre complexas questões filosóficas, trazendo fundamentos básicos de Filosofia para iniciantes na arte do pensamento dessa ciência. Isto denota sua capacidade de escritura. O que é Ideologia, um de seus livros com mais de cem mil cópias vendidas, e Convite à Filosofia são os que mais a popularizaram. Mas, Chauí tem escrito também sobre política, cultura popular e democracia, além de outros temas, tendo dois grandes trabalhos filosóficos/acadêmicos sobre Merleau Ponty e Espinosa.

... Este livro (Brasil...) foi escrito no momento em que o país pensava em festejar 500 anos de descobrimento. No entanto, a autora inverte a questão indagando ao leitor sobre o que realmente se deveria comemorar naquele quinto centenário de descobrimento. Para ela, o mito fundador do Brasil, revestido de diversas formas no pensamento social, ao longo da historia brasileira fornece a base para as comemorações, porém trata-se de uma criação ideológica formulada para impor uma visão de mundo que beneficia alguns poucos brasileiros.

Então, já no primeiro capítulo, Com fé e orgulho, a autora explica a idéia de mito que a está guiando na elaboração do livro. O mito é entendido não só no sentido etimológico do termo (mythos – narração pública de feitos lendários de uma comunidade), mas também em sentido antropológico, como uma espécie de narrativa utilizada para explicar, entender, ou ainda justificar determinada realidade, solução imaginária para tensões, conflitos e contradições “que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” (p. 9).
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Neste sentido, o mito pode ser compreendido na ideologia, ou seja, através das idéias produzidas com intencionalidade clara de mascarar a verdadeira situação de uma dada realidade. Chauí mostra uma série de estereótipos produzidos pelo pensamento social através da literatura, dos escritos acadêmicos/científicos, dos discursos políticos, entre outros que vão sendo formados em uma representação de Brasil para os brasileiros. Assim, os brasileiros construíram, sobre si mesmos, formas de mitificação das representações que têm de si: o índio corajoso, os negros estóicos e os bravos e melancólicos portugueses cuja mestiçagem produziu, entre outras coisas, o samba.

O mito fundador é, dessa forma, compreendido como aquele que explica a origem ou a fundação de determinado povo e este é eternizado pela sua constante resignificação, a cada momento da história de um povo. Para argumentar, a autora lança mão de alguns mitos brasileiros, como a crença generalizada de que o Brasil é um dom de Deus e da Natureza, que tem um povo pacífico, ordeiro, generoso, alegre e sensual, mesmo quando sofredor, ou ainda que é um país sem preconceitos. (p.8).
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No segundo capítulo A nação como semióforo, a autora discute como o termo nação se constituiu historicamente até chegar à noção que adquire no século XX. No Brasil, o termo nação vai se constituir como um semióforo fundamental, um sinal que encarna o mito político ou religioso, um semióforo/matriz, que é produzido pelo poder político, através do apelo à identidade nacional. A idéia de identidade nacional opera um movimento que sai da consciência de si (das pessoas enquanto indivíduos) e de classe (das pessoas enquanto pertencentes a um lugar social relativo ao modo como se inserem no processo produtivo e reprodutivo na sociedade) para a idéia de consciência nacional, ou seja, há um despojamento dos sujeitos políticos e sociais, provocando um esvaziamento intencional que é diluído na idéia de nação. Ressalte-se que a idéia de nação, vista por esse ângulo, é percebida pela perspectiva do atraso ou do subdesenvolvimento, posto que a interpretação do Brasil é feita pela ausência, pelo que lhe falta, e não pelo que no país existe.
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A invenção recente do termo nação como Estado-nação é usada como possibilidade de mobilização dos cidadãos através da religião cívica – seja o patriotismo, nacionalismo, ou o fascismo. A religião cívica é tão bem sucedida que pode ser percebida também no nacionalismo das esquerdas brasileiras dos anos de 1950 a 1960, todavia, com algumas diferenças, pois, para aquelas últimas, a referência é a divisão social de classes e não a unidade social imaginária, imposta pela idéia de nação.

Desde 1980, no entanto, as noções de nação e nacionalidade se deslocam para o campo das representações já consolidadas, servindo para legitimar nossa sociedade autoritária, e é neste contexto que a autora critica o semióforo construído como: Brasil 500 anos. Nos capítulos seguintes, a autora reflete sobre as várias formas que o semióforo Brasil se firma do século XIX ao século XX. O verde-amarelismo, no terceiro capítulo, é tratado via imagem celebrativa do país essencialmente agrário, imagem construída pela classe dominante brasileira que incorpora as idéias do Brasil colônia de exploração. Contudo, observa que, a partir de meados do século XX, o verde-amarelismo, criado pelas elites, é re-significado e passa a operar como compensação imaginária para a condição periférica e subordinada do país. É assim que o semióforo nação, através do verde-amarelismo, nada mais faz do que manter o mito fundador do Brasil.

Outra forma de construção e formação do semióforo Brasil se dá através da produção intelectual de sua elite, assunto abordado no capítulo quatro Do IV ao V centenário. Nesta direção, ela faz uma análise de trabalhos de alguns intelectuais, tais como: Afonso Celso (Visconde do Ouro Preto) em Porque me ufano de meu país; Euclides da Cunha em Os Sertões; Sílvio Romero em O Caráter nacional, As origens do povo brasileiro e a História da literatura brasileira. Analisa também algumas instituições, dentre as quais: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IBGE), criado em 1838, que desde então tem a tarefa de oferecer ao país um passado glorioso e um futuro promissor (p.50) e esta vem sendo realizada.
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Em seu último capítulo O Mito Fundador, Marilena Chauí discorre sobre a forma como foi produzido o mito fundador do Brasil. Primeiramente, relacionado à Natureza, pois funda-se nela, desde o descobrimento do Brasil, em 1500, através da idéia do Paraíso na Terra, o Topos do Oriente como o Jardim do Éden, o que nos lança para fora do mundo da história concreta. Nessa perspectiva, a servidão voluntária é a forma de explicação, como também a justificativa da escravidão de negros e índios pelas elites, pelo mecanismo da naturalização da escravidão no Brasil Colônia. A segunda forma teria sido a sagração da história pela divinização dos governantes, que representam Deus, e não dos governados. O direito divino dos reis, juntamente com a sagração da história, pela concepção de tempo judaico - cristão adotada, na qual tudo está determinado por Deus. Essa forma acaba por destituir os sujeitos de sua subjetividade e ação. Assim, o mito engendra uma visão messiânica da política que possui como parâmetro o núcleo milenarista do embate cósmico final entre a luz e a treva, o bem e o mal, de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem) ou satanizado (treva e mal).
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Na conclusão, Comemorar?, a ênfase dá-se pela dúvida. O título já sugere contundente desfecho da autora que faz, por conseguinte, uma reflexão sobre a sociedade brasileira. Fortemente verticalizada, e homogeneizadora das diferenças, em verdade, contraditoriamente à retórica, a sociedade brasileira vem impedindo as diferenças enquanto realizações das subjetividades ou como alteridade. Não há, finalmente, segundo Marilena Chauí, motivos ufanistas para comemoração do: Brasil 500 anos.
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Pontuamos ainda que existem diferentes interpretações realizadas por outros autores sobre a miscigenação das raças no Brasil, que o colocam como terra de mestiçagem, no sentido positivo, afirmativo da identidade social. No entanto, o ponto de vista adotado por Chauí, neste livro, sobre a formação social do povo brasileiro, mostra que o debate ainda suscita uma profunda reflexão da qual longe estamos de esgotá-la plenamente nesta resenha. Portanto, reafirmamos que o livro, por sua linguagem acessível e argumentação veemente, fornece subsídios fundamentais para uma reflexão sobre questões que se encontram fecundas ainda no pensamento social brasileiro. Todavia, é um livro que poderíamos considerar indispensável a estudantes e professores e a todos que desejarem refletir acerca das raízes do Brasil.
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